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sábado, 10 de outubro de 2015

Arte e cultura no rol das mudanças econômicas



Adailtom Alves Teixeira[1]

A virada do milênio foi uma virada de hambúrgueres para software. Software é uma ideia, hambúrguer é uma vaca. Ainda haverá fabricantes de hambúrgueres no século XXI, é claro. O poder, o prestígio e dinheiro, entretanto, fluirão para as empresas que detêm o indispensável capital intelectual.
P. Coy, Business Week, agosto de 2000.

O capitalismo vive em crise e, como ainda não conseguimos acabar com ele, vive se reinventando. Quanto à cultura, a mesma vem sendo ponta de lança de práticas que apenas favorecem esse modo de produção. Chin-Tao Wu, em Privatizações da cultura, já analisou como a política neoliberal chegou ao campo das artes. Hoje, cada vez mais, ideias são mais rentáveis do que os produtos materiais. Uma peça de máquina, um automóvel, é preciso ser produzida para se vender; já uma ideia, ao ser criada, pode ser vendida indefinidamente, gerando muito lucro para os detentores dos seus direitos. E não são sempre as grandes empresas as maiores detentoras dos direitos autorais?
É nesse campo que se coloca a economia criativa. E as últimas ações d@s ministr@s da Cultura para expandir cada vez mais esse “universo cultural” são um pequeno retrato do que devem esperar todos e todas que lidam com arte e cultura em nosso país.
A ideia de uma economia criativa, até onde se apurou, começou na Austrália, com a perspectiva de nação criativa, depois migrou para o Reino Unido, sob a batuta de Tony Blair, continuador da política de Margareth Thatcher. E se os mercados ditam as regras, claro que o Brasil não poderia ficar de fora. A Secretaria de Economia Criativa foi implantada em janeiro de 2011, logo no início do primeiro governo Dilma, deixando claro como a cultura deveria ser tratada: como negócio.  A Secretaria é voltada para pensar e auxiliar na construção de produtos e serviços de dimensões simbólicas. Se a indústria da moda, que sempre vampirizou as criações artísticas, é um desses campos, foi o que se perguntaram muitos brasileiros à época da ministra Marta Suplicy.
Em dezembro de 2011 a ex-Secretária de Economia Criativa, Claudia Leitão, em artigo publicado no Jornal Brasil Econômico, afirmou ser difícil conceituar o que seja economia criativa, no entanto, não deixava dúvidas: “mas nós sabemos onde ela está”. E frisava a necessidade de linhas de crédito para fomentar os empreendimentos criativos, pois a criatividade precisa virar inovação, para que esta se torne riqueza - muito embora o artigo não deixasse claro para quem iria a riqueza gerada por tais empreendimentos. Leitão já não está mais na Secretaria, mas as ações do Ministério parecem deixar claro quais devem ser os rumos do que entendem por economia criativa e quais os mecanismos para isso. Para se ter uma ideia, a tônica da política cultural brasileira ainda são as leis de renúncia fiscal, sendo a Lei Rouanet o modelo único. O governo petista, de Lula a Dilma, não fez nenhum enfrentamento a esse mecanismo. Ao contrário, mais que quintuplicou os valores no período de suas gestões, e a renúncia fiscal já passa de 1,2 bilhão.
Os dados dessa política absurda são contundentes. Eliane Parmezani, já em 2012, na edição de outubro da Revista Caros Amigos, afirmou que “por meio de renúncia fiscal, foram disponibilizados 12 bilhões de reais nesses 20 anos de lei Rouanet. Contudo, 50% dos recursos estão concentrados em cerca de 100 captadores. A outra metade fica com 20% deles. E os outros 80% dos proponentes não captam nada. Mais: apenas 5% dos projetos aprovados na lei Rouanet são realizados”. Os dados do próprio Ministério da Cultura não deixam dúvidas da perversidade desse mecanismo: a região Norte inteira capta menos de 1%. Além disso, de cada dez reais de todos os recursos, nove é dinheiro do Estado. Portanto, existe aí um feudo cultural financiado com dinheiro público. Mas não vemos nenhum enfrentamento por parte do governo federal em relação a essa política.
Se se não rever urgentemente o modelo de política cultural, não serão apenas desfiles de moda os beneficiados, mas uma gama infinita de “criativos”, enquanto pequenos produtores das artes padecem pelo Brasil. Se a ideia da economia criativa for no sentido de distribuir renda, como reza o discurso oficial, eu não tenho dúvida que um pequeno festival de teatro realizado no norte do país, ou qualquer outra região, distribui renda e agrega muito mais valor do que qualquer desfile de moda realizado fora do Brasil. Quanto à renúncia fiscal já está claro que apenas meia dúzia são os beneficiados, resta saber se haverá alguma mudança de rumos por parte do governo federal. No entanto, como este só tem feito concessões às elites, as esperanças são miúdas.

Da participação

            A novidade por parte do Ministério da Cultura e do requentado ministro Juca Ferreira é a “nova” Política Nacional de Artes e a Caravana das Artes, grosso modo, uma busca desesperada de aliança e apoios políticos, já que não há recursos se quer para pagar os míseros editais da Funarte. No claro português: pura enrolação. Quando não há recursos, “vamos dialogar” para demonstrar que estão trabalhando. E isso mesmo depois das conferências, dos encontros setoriais, da construção das metas e da grita pela criação de uma política de Estado, diferente da que vem sendo praticada. Os gestores pedem mais participação da sociedade civil. Para lembrar, no campo do teatro, do agora é Lula, até a pátria educadora de Dilma, nenhuma lei foi criada e a Funarte está falida. No entanto, as demandas são as mesmas há, pelo menos, uns quinze anos, mas o ministério repete o já visto. E nisso o atual ministro é bom. “Vamos dialogar, pois a falta de diálogo pode levar ao fascismo”, como disse na cidade de Santos no início de junho de 2015.
            Ermínia Maricato (O impasse da política urbana no Brasil, 2012), que fez parte do governo, ainda na gestão de Lula faz um alerta importante: “Nunca fomos tão participativos”. A autora deixa claro que a luta por marcos jurídicos manteve a sociedade desigual e os movimentos sociais pararam de “tratar do presente ou do futuro do capitalismo”. O Estado mudou e a elite continua cooptando e anulando os conflitos sociais. E claro, é justamente a participação que cumpre a função fundamental nesse panorama: a ilusão de se está avançando. Não é o que temos visto? Quantos de nossos colegas ainda acreditam que a participação vai criar uma política justa? E assim ficamos sem discutir a justiça dentro do capitalismo, sem fazer o real enfrentamento das verdadeiras questões. É preciso entender o momento atual. Afinal os recursos continuam indo para as mãos dos mesmos, cada vez mais via dívida pública e no campo cultural via renúncia fiscal.
            No que tange aos movimentos culturais, a Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), coletivo teatral espalhado por todo o país, no último encontro de maio de 2015, realizado na cidade de Sorocaba, resolveu dar um basta ao tal do diálogo. Afirmam em seu manifesto: “Sentimos que o sim ao diálogo deixou de ser possibilidade de transformação para tornar-se um estado de legitimação de uma falsa democracia, de uma falsa participação, de um falso programa de cultura que nunca houve.” E afirmam ainda, o que é verdade, que as demandas estão documentadas a muito tempo. “Resta por em prática”. Dentre as exigências está o fim da renúncia fiscal – aliás já faz tempo que afirmam e lutam pelo fim da Rouanet – e a criação da lei do Prêmio Teatro Brasileiro. 
            Dentro do seguimento teatral não tenho dúvidas que a RBTR tem um pensamento avançado em relação às políticas públicas e ao modelo de Estado que temos. No entanto, o coletivo tem limites. A começar pela própria linguagem que representam, isto é, não podem falar em nome da instituição teatro (e nem pretendem). E mesmo entre o teatro de grupo, digamos assim, a parte mais politizada, tem limites de entendimento do que deva ser uma política cultural de Estado para o teatro. Por isso mesmo, a RBTR promete se juntar a outros movimentos sociais para fazer o enfrentamento desse estado de coisas que vivemos. Quem se sentir incomodado com tanto cafezinho e tanta conversa pode se somar ao coletivo, que se reúne pelo Brasil duas vezes ao ano. Sempre de forma independente.
            Para terminar, e penso que como demonstração de nosso tempo histórico, apresento os pressupostos de dominação de Max Weber, o sociólogo mais querido da direita mundial. Afirma ele, em Os três tipos puros de dominação legítima (2006), são: a dominação legal (dominação burocrática): “qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma”. Logo o que se obedece é à regra estatuída; dominação tradicional (o patriarcado é o tipo mais puro); dominação carismática, em que “A associação dominante é de caráter comunitário, na comunidade ou no séquito”. Parece-nos que no Estado brasileiro, e não apenas no campo da cultura, o primeiro elemento e o terceiro se juntaram e se alojou como prática dos gestores públicos. No entanto, se em 2002 o traçado econômico do governo federal já desenhava seu caminho, o carisma tem se colocado como um véu que encobre a realidade. E se só se faz enfrentamento quando se sabe onde se pisa e contra quem se luta, faz-se necessário a retirada de tal véu. Aí, nesse campo é preciso ir ao antípoda de Weber, ainda que tenham origem e língua em comum, as perspectivas teóricas são outras; é preciso ir a Marx.
            Quando arte, cultura e a própria vida se tornam mercadorias é necessário ver o problema em sua raiz. Afinal Estado moderno e capitalismo se confundem. Logo, não adianta se organizar apenas para gritar por verbas vindas desse mesmo Estado. É preciso compreender e enfrenta-lo em sua real dimensão. Como afirma Alysson Leandro Mascaro em Estado e forma política (2013): “A compreensão do Estado só pode se fundar na crítica da economia política capitalista, lastreada necessariamente na totalidade social. Não na ideologia do bem comum ou da ordem nem do louvor ao dado, mas no seio das explorações, das dominações e das crises da reprodução do capital é que se vislumbra a verdade política”.
            A tragédia maior é que, em plena crise estrutural do capitalismo, os atores sociais, os sujeitos históricos que deveriam realizar a mudança, os trabalhadores, estão fragmentados, desorganizados. Quanto aos artistas, em sua grande maioria, tem se resumido a alimentar a espetacularização ou a lutar bravamente para não morrer de fome. E aí perguntamos: um artista preso à sua fome faz uma arte independente?



[1]                    Professor no curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; graduado em História e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; membro do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE e articulador da RBTR.


Publicado originalmente em Contrapelo - Caderno de estudos sobre arte e política, nº 2, 2015.

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