DIA 01 DE SETEMBRO
SEGUNDA
Primeiro dia
do Ocupa Nise 2014. O primeiro dia não é fácil, pessoas chegando, dando nomes,
sendo hospedadas, se localizando. O grupo de acolhimento passava informações
enquanto os nomes eram conferidos na listagem: “Meu nome tem que estar na
lista... Fui confirmado... Em qual andar eu fico?”. Movimentação normal, pois
era apenas o inicio do encontro. No quarto andar do Hotel da Loucura, um café
reforçado para os participantes e também para os que tinham chegado um dia
antes. Mais foram chegando, com mochilas e colchonetes, ocupando os quartos e
os que trouxeram instrumentos, pegaram seus violões, tambores, pandeiros,
sanfonas e a celebração teve inicio, com muito canto e dança, e como não
poderia deixar de ser, estando no Rio de janeiro, espaço para o samba e para as
marchinhas de carnaval. A dramaturgia começa a ser escrita neste momento.
O primeiro
movimento estava se manifestando, a concentração para o cortejo de abertura.
Houve o almoço, mas não houve pausa, a ansiedade para a abertura era imensa.
Começamos a nos preparar dentro do espaço fechado do hotel. Máscaras, cores,
fantasias e instrumentos. Ali o ritual deu seu corpo, com os participantes se
conhecendo e se reencontrando, preparando o espírito e o sentimento. Os
internos do Nise riam e dançavam conosco, uma energia boa... Podíamos sentir
isso através dos internos, pois eles acabam por serem canais naturais, se
tivesse uma energia ruim, não estriam pulando e cantando com o povo. E assim,
levantando as bandeiras e os estandartes, começamos a caminhar em direção ao
local onde se daria a abertura. Descemos as escadas no balanço do cortejo.
Saímos do hotel da loucura e nos dirigimos para a Praça Nei Matogrosso, praça
está adotada pelo cantor que esteve presente no Ocupa Nise 2013, compartilhando
sua arte e sua inteligência. Um amigo que se pode contar e um admirador com
conhecimento da história da doutora Nise da Silveira. E foi cortejando o
Instituto e os seus integrantes e clientes que entramos na pequena, mas
aconchegante Praça Nei Matogrosso.
Evento de arte Pública
em um lugar de saúde pública
Chegando a
praça, nos preparamos para o primeiro diálogo do evento. Presentes para
dialogar com os participantes: Amir Haddad, Vitor Pordeus, Heloisa Buarque de
Hollanda e Professor Francisco Gregório Filho. Após muita música e intervenções
poéticas, sentamos para escutar os convidados, pois como foi dito, é bom tocar
os tambores, mas é bom sentar para dialogar, avaliar, entender o que está
acontecendo. Nem muito um lado, nem muito o outro, equilíbrio, pois se não
tiver caímos a loucura. Loucura é falta de equilíbrio, mental, carnal,
emocional e espiritual. A arte é um instrumento poderoso de cura e de prevenção
de doença. É saúde.
Numa cidade
como o Rio de Janeiro, como exemplo, que utiliza a força para manter o que
seria a ordem, vem a arte para desestabilizar essa ordem e mostrar uma
possibilidade de pensamento e de uma forma de organização que ajuda a sanear a
cidade com os melhores sentimentos. “A arte é a desordem que ajuda a
reorganizar o mundo, não pode ser diferente... – Amir Haddad”. Realizar um
encontro que fale de arte pública dentro de uma instituição de saúde pública,
ainda mais um hospício, estando hospedados juntos como os internos, tendo
contato com eles, nos força a entrar em contato e ter relação com esse espaço e
ver que existe uma outra forma de proceder e contribuiu para reorganizar
esse mundo, mostrando um outro
pensamento em contraponto com o pensamento vigente, permeado de camisas de
força e remédios, como se só isso fosse possibilidade.
A cidade do
Rio, como outras, estão doentes. As pessoas se encontram enlouquecidas, vítimas
deste cotidiano imposto, não conquistado. Não precisamos estar no estágio em
que se encontram os internos do Instituto Nise da Silveira para entendermos a
loucura em que vivemos, ainda mais no período “de plena decadência em que
vivemos - Amir Haddad”.
Falar de
arte Pública é falar de saúde pública, de ações que contribuem para que
políticas públicas para a saúde, educação e para a arte sejam construídas e
estabelecidas. Não tem mais como continuar com as políticas atuais que se dizem
públicas nos rótulos, mas que são privadas em suas linhas. Existe um clamor por uma nova organização
social que tem romper com as “camisas de força”, romper com as “cercas”,
transgredir a ordem estabelecida para
enveredar uma ordem pública pública.
E assim como
começamos, terminamos este primeiro dia, tocando, cantando e dançando,
agradecendo aos deuses e orixás pelo inicio do encontro, pela presença dos
convidados, dos participantes e pela lua cheia que iluminou a noite deste
primeiro dia.
Herculano
Dias
Segue texto
distribuído no Evento Ocupa Nise 2014
A cerca estimula a
desordem
Ordem Pública –
Desordem Pública
Qual é a ordem das coisas? Está tudo em
ordem segundo uma lógica milenar, ancestral e inevitável? Qual a ordem da natureza? Qual é a ordem, por
exemplo, da física quântica?
A Ordem numa escola, pública ou
privada, será a mesma ordem de uma penitenciária? Os alunos que se perfilam em ordem para entrar ou sair de suas células-salas,
estão cumprindo a mesma ordem dos prisioneiros
entrando ou saindo de suas celas-isolamento para o pátio de
recreação? Não haverá nenhuma diferença?
Qual a diferença? Um corredor de passagem ladeado por celas-isolamento não se
parece com um corredor ladeado por células-salas de aula?
A arquitetura estabelece a ordem ou é a ordem que define seus espaços de acordo com os valores
humanos, ideológicos que a produzem?
Qual a diferença possível entre uma cidade do
sec. XIX e uma do sec. XXI?
Conseguiremos algum dia abandonar o sec. XIX quando tudo se intensificou
e nos organizamos de uma maneira diferente?
Procurar uma nova ordem? Mas será
possível se encontrar uma possível nova ordem, mais justa e mais humana,
sem passarmos por momentos muitas vezes
dolorosos, de desordem?
Será
possível uma nova ordem nascer da ordem vigente (dominante)? Ou somente a
desordem poderá abrir horizontes para uma
nova ordem?
É possível
uma nova ordem sem desordem?
As manifestações públicas que
abalaram o Brasil, faz pouco tempo, estabeleceram um nível variado de
desordens. As reivindicações se faziam ouvir ou
notar. Obviamente se percebia nos movimentos uma insatisfação
com a ordem vigente, e um anseio por uma nova ordem. Novas possibilidades de
ordenação ou organização social.
Aquela desordem aparente tinha em
seu interior germes de novas ordens. Que
sem estas manifestações não poderiam ser vistas nem ouvidas. Era a desordem que
dava à nova ordem desejada alguma visibilidade.
Foram, porem, tratadas como
desordem, simplesmente. Se levantou um clamor nacional pelo pronto
estabelecimento da ordem. Ninguém suporta a desordem por muito tempo. E as forças encarregadas da manutenção da
ordem, da ordem pública, foram chamadas a cumprir seu papel de mantedoras do
“Status quo”. Tudo foi abafado. A ordem,
finalmente, foi re estabelecida. E nenhuma das reivindicações manifestadas nas
ruas foi até agora atendida. Nenhuma. Jaz sobre ela o império solene da
ordem. Que veio acompanhada de nenhum
progresso.
Na “desordem” nosso coração se expressa,
manifesta. Desejos ocultos e reprimidos aparecem e nos tomam de assalto. Sem
antes mesmo analisarmos sua natureza, nós os sufocamos e procuramos
esquecê-los. Em nome de que? Da
ordem. Da ordem pública e até mesmo da ordem pessoal, subjetiva. Todos nós
sabemos, que lidamos com o movimento e a
transformação, que confusão ou caos, ás
vezes, se instalam em nossas mentes e corações sempre que uma nova idéia, ordem, pensamento vai se manifestar.
Brecht
lembrava: a lua nova é sempre precedida de uma noite escura. Abafar a
desordem sem ouvir seus anseios é o pior tipo
de totalitarismo a que estamos sujeitos no mundo que escolhemos e criamos para viver.
Mantida
prisioneira da ordem nenhuma verdade nova se revela.
A Arte e a Ordem
A arte é a possibilidade de
manifestação da nossa desordem interior. É também, a forma mais profunda de re -
organizar o nosso mundo. Não é a ordem do mundo que organiza a arte,
mas sim a desordem da arte que reorganiza o mundo.
É a transgressão que possibilita a evolução,
uma nova ordem para as coisas. Assim, o
conceito tradicional e repressivo de “ordem pública” não é o melhor valor
social para lidar com as questões das
Artes Públicas, que se realizam nas ruas e nos espaços públicos , de uso liberado para a população.
Hoje sabemos perfeitamente que
aquele policial que ali está é um representante da ordem pública e está
ali para mantê-la. Assim como sabemos , também, que aquele artista ou grupo que está se apresentando em praça publica parece ser um
foco permanente de desordem e
arruaça. Tanto que os policias ficam
logo atentos. Isto quando não agridem,
ameaçam, espancam os desordeiros que
atrapalham a ordem pública. Para lidar
com estes artistas públicos e respeitar o seu trabalho seria preciso
reconsiderar o conceito vigente de ordem publica, e, entender que, estes
artistas ocupando estes espaços talvez
possam fazer mais pela ordem publica que os agentes de plantão espalhados pela cidade, reprimindo todo e qualquer tipo de
manifestação que poderia vir a incomodar
os donos do mundo ordenado desta maneira.
Será preciso reconhecer que existe
uma forma superior de organização
social que poderá modificar o conceito em uso de “ordem pública. As “Artes Públicas” tem esta função desde a
mais remota ancestralidade do ser
humano. Arte, medicina, religião, tudo junto ajudou nossos antepassados a
avançarem. Nas sociedades modernas, este
papel e esta função das artes foram se modificando e desaparecendo por
completo, ficando restritos aos espaços
fechados e aos que a eles têm
acesso. Até chegarmos no impasse em que
se encontra a produção cultural diante da
regulamentação do mercado. E a
arte que poderia organizar o mundo, como as festas, e celebrações, religiosas
ou não, passa a ser substituída nos grandes
aglomeramentos humanos pela policia.
Achamos que não podemos prescindir
de policia nas ruas. E das artes nas ruas? Podemos? Não será possível pensar
uma cidade onde o lúdico, prazeroso, a convivência urbana de qualidade, o
humor, a criatividade, a poesia e a beleza dividissem com os “representantes”
da ordem a organização e a reorganização permanente do
mundo?
Uma nova
ordem pública para uma possível Arte –
Pública.
São
muitos os artistas que escolheram
os espaços públicos para se manifestar, que
no entanto se encontram sufocados,
reprimidos pela necessidade da
manutenção da ordem a qualquer
custo.
Se não houver espaço para a “desordem” que reorganiza o mundo
constantemente, teremos muitas dificuldades em
pensarmos um modelo novo de cidade e convivência urbana que nos tire do
sufoco em que vivemos hoje em nossas
cidades, grandes ou pequenas.
Por isso, achamos que uma boa política
Pública para as Artes públicas, deveria também colocar em questão a “Ordem
pública” tal qual a entendemos até agora.
Estimular as Artes Públicas,
poderá modificar nosso conceito do que é
“Ordem Pública”.
O diálogo com as Secretarias de
Cultura e da Ordem Pública deveria ser
permanente, sem predominância, é obvio, do
pensamento policial.
“ Tudo está
no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus. Não devemos esquecer de dizer,
graças a Deus, graças a Deus!”
AMIR HADDAD