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quinta-feira, 24 de março de 2016

Não é por Dilma e Lula


ESCRITO POR LUIS FERNANDO NOVOA GARZON   
QUARTA, 16 DE MARÇO DE 2016




Tomo consciência da luta. Em um mundo de mentira, a mentira não é extirpada nem pelo seu oposto, mas sim por meio de um mundo de verdade.
Kafka (Cartas em oitava)


Há aquela verdade cômoda e leviana que serve à reprodução da ordem como ela é, do jeito que for. E há aquela verdade dolorosa, que revela os abismos nos quais mal nos equilibramos. Há, pois, muito mais que Dilma, PT e Lula em jogo. No momento de descarte dessas peças de mediação social-liberal e de adoção de uma política de tábula rasa para transferir todo o peso dos ajustes externos para a população, independente de quem esteja na Presidência, não podemos nos acomodar com o que seja menos pior ou menos desastroso. A questão colocada, com ou sem impeachment, é como devemos nos portar no interior de uma democracia virtual na qual os castigos impostos à população trabalhadora são pré-estipulados, no máximo dosados.

Se o esvaziamento político é o preço para ficar no Governo ou para ser Governo, não seria mais consequente inteirar-se, como sujeito coletivo, fora dele, combatendo o poder capitalista onde objetivamente se concentra e irradia? Depois de esvaziada a Presidência e tercerizada a política econômica, que sentido há na defesa do “Estado de direito”?  Quando tudo que interessa à população já está delimitado ou decidido, quando o raio de governabilidade admitido passa a ser assunto particular das finanças, que pode haver senão simulação e engodo? Seria o mesmo que esperar bons modos à mesa das fileiras da direita raivosa quando se preparam para abocanhar e despedaçar o já minguado corpo social da nação.

A desmoralização do PT e dos Governos Lula e Dilma vem a calhar com a agudização da crise sistêmica, possibilitando que se oculte a rapina e a canibalização típicas desse ciclo. A narrativa predominante sublima a dominação em corrupção alheia, apenas a dos adversários de antanho, na verdade aliados leais das frações dominantes desde 2002. O foco na degradação moral dos “agentes políticos” procura dissimular como os mesmos foram e são cotidianamente prostituídos pela própria dinâmica concentradora do capital e por sua sanha expropriadora. Absolvição ou relativização de reiterados crimes de cartelização, fraude financeira, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Plena admissibilidade da captura privada da política de compras governamentais e do enquadramento oligopolista da política de financiamento público de longo prazo. As operações mais que sujas de nossa pragmática burguesia ficam limpas e reluzentes quando seus procedimentos são sacramentados em acordos de cessação, ajustes de conduta e mecanismos congêneres.

Redundante denunciar corrupção frente aos rearranjos oligopolistas que requerem governos ad hoc e gabinetes de emergência. Enquanto se difunde a ilusão que é possível pilotar o chamado “mercado” de dentro dele, ingressando nos processos de fusão, por meio de fundos de pensão semi-públicos, junto com bancos e conglomerados aliados, promove-se o abate impiedoso de capitais menores, massas falidas estatais, bens públicos, territorialidades. Espaços e convívios coletivos são dessa forma repartidos como tradables e estoques futuros contabilizáveis. Assim chegamos, de um lado, a um Estado social minimizado, em agonia espetacularizada, e de outro, a um Estado máximo para subsidiar e guarnecer novas fronteiras de mercado e maiores margens de lucratividade. Gordos resultados primários para bonificar os credores da dívida e bens e setores públicos abertos à capitalização, esse é o acordo considerado pétreo e intocável, a pedra angular da democracia brasileira após a consolidação da liberalização financeira nos anos 90.

Foram, portanto, as políticas neoliberais de privatização e desregulamentação que limparam o terreno para a institucionalização da corrupção e o espraiamento do crime organizado no interior das empresas e das agências públicas responsáveis por regulá-las. A poliforme burguesia postada no Brasil nunca abriu mão de operar ao arrepio da lei, achatando salários, intensificando jornadas de trabalho, subornando fiscais, impondo danos irreversíveis às comunidades locais e ao meio ambiente. Esse é seu modus operandi, notadamente em países periféricos com fronteiras econômicas abertas e em expansão.

Se quem paga, manda; quem recebe, obedece. Houvesse então coerência na ordem de punibilidade, não haveria leniência para corruptores, nem se personalizaria a responsabilidade como se a organização empresarial como um todo não estivesse imbuída de tal cultura criminosa. Os ativos dessas empresas - assim como se faz, legalmente, com propriedades em que se promove ou o narcotráfico ou o trabalho escravo - deveriam ser confiscados e repassados à sociedade por intermédio de fundos autogestionados e cooperativas de trabalhadores. Quem são as forças sociais que querem e podem levar a transparência e moralidade nos negócios públicos e privados às últimas consequências?   
Governabilidade e antecipacionismo à direita

Depois de mais de uma década de colaboracionismo e de bombardeio ilusionista quanto à capacidade “inclusiva” do capitalismo brasileiro, o reaprendizado acerca da natureza da “sociedade competitiva” é lento, doloroso e por isso não se dá espontaneamente. Mecanismos de transferência de renda e patrimonial obtidos no último arranjo oligopolista são constitucionalizados automaticamente. Quanto pior, melhor para os capitais predatórios, pois haverá sempre uma escala aceitável do que seja menos pior no que toca a sacrifícios sociais adicionais.

Do “Fora Levy” chegamos a um não-Levy. Sem mais necessidade de interventores externos, deu-se por cumprida a missão de aprofundamento do desmonte. A credibilidade concebida pelos mercados não desconhece o diferencial do auto-sacrifício oferecido para cortar na carne, na base social de origem. Cortar a Previdência dos trabalhadores e encerrar os pisos obrigatórios dos gastos sociais. Ponte para o futuro é pouco: todas as concessões agora e de uma vez. Isso seria “Ir lá e governar”, na concepção de Delfim, é ir além dos tucanos, radicalizar e regulamentar a Lei de Responsabilidade Fiscal, entronizando-a no âmago do aparato econômico decisório do Estado, eis o caminho para ficar no “comando”.

Um passo adiante na financeirização do Estado superando os limites de qualquer fração de direita. Antecipando-se às suas exigências futuras, fazendo da agenda ultraliberal perdida uma agenda pródiga, voluntariamente recepcionada pelos segmentos que antes compunham a chamada frente anti-neoliberal.

Nelson Barbosa, defensor neófito de medidas ultraliberais, dá o tom para avançar para reformas estruturais “do lado do gasto público”. O que quer dizer superávits primários crescentes e plurianuais para gerar déficit nominal zero, incrementando o negócio da dívida pública. Depois de tornar irrestritas as concessões territoriais e setoriais, a do pré-sal incluída, anuncia a Reforma da Previdência e a promessa de enterro das últimas conquistas constitucionais, os patamares mínimos de gastos sociais obrigatórios. E dá-lhe teto plurianual das despesas orçamentárias e flutuação do superávit primário sempre para cima com eventuais aumentos de receita. Traduzindo: gatilho para confisco de excedentes para evitar novas despesas - em favor dos gastos financeiros.

Esse engessamento voluntário expressa a intenção de um processo de mutilação crescente das “políticas domésticas”, como os regimes internacionais denominam as margens decisórias residuais existentes nos âmbitos dos Estados nacionais, na perspectiva de quem são os beneficiários últimos da perenização do ajuste. Auto-suplício na forma de uma desintregação voluntária de dinâmicas sociais: isso não tem preço. Transferência crescente de poder e de base social e nacional é negócio primeiro, porque literalmente amplia margens e possibilidades para negócios segundos, terceiros, infinitos. Pedaladas e malabarismos, tudo é permitido para os derivativos financeiros, o salvamento imoral dos bancos e o fomento de dívidas nutridas por meio do furto de direitos e oportunidades niveladoras.

A crise nos põe diante de opções claras acerca dos padrões civilizatórios empurrados escada abaixo; chutam-se as escadas e bloqueiam-se os acessos. Tornam solváveis as contas públicas, tornando solúveis conquistas sociais das gerações precedentes e futuras. A Previdência Social Pública e o sistema de seguridade social em que se insere são uma herança secular de lutas dos trabalhadores do campo e da cidade, atravessaram ditaduras, não se dobraram ao aberturismo transnacionalizante dos anos 90, nem às políticas focalizadoras e fragmentadoras preliminarmente estabelecidas nos anos Lula e Dilma. Cortar esses gastos e direitos sociais, resultantes de determinado equilíbrio de forças, depende da rasura da memória desses direitos e dos processos históricos que os originaram.


A polarização que interessa

A abertura de novas ofensivas de expropriação de fundos públicos e serviços essenciais demonstra claramente a direção que se segue, independentemente de quem comanda formalmente o navio. A questão reduziu-se à velocidade das reformas que o mercado exige. Barbosa sobressaiu-se, na curta gestão de Levy, como possível fiador da gradualidade da implementação das reformas privatistas e fiscalistas. Barbosa procurou, em seus últimos movimentos, se destacar pela “profundidade” conferida a essas mesmas reformas. Indiferentes às oscilações do ex-neokeynesiano, as agências internacionais de risco orquestradamente castigaram o país por “lentidão do ajuste”, rebaixando sua “nota soberana”.

A orquestração também se percebe na movimentação das bolsas de valores e na variação da cotação do dólar. Os autointitulados “mercados” consideram que o impeachment destravaria a pauta no Congresso e melhoraria as expectativas dos investidores. Verificou-se, após o incremento das operações de incriminação de Lula e de asseclas de Dilma, uma maior unificação do campo conservador. As frentes empresariais, midiáticas e militares passaram a convergir no tempo e no espaço, como ficou claro nas manifestações de rua no dia 13 de março.

Não será a defesa da manutenção do Governo Dilma, governo ao qual ela própria renunciou em seu primeiro dia de eleita, que embasará a unidade do campo popular contra a avalanche neoliberal. A defesa da imunidade de Lula tampouco proporcionará amplitude maior que a já disponibilizada pela Frente Brasil Popular e outras frentes-sombra. De seu ingresso no ministério de Dilma, pode-se esperar apenas a costura de um mandato-tampão, que resguardaria a parte em troca do todo. Não será surpresa que o próprio Lula apresente uma ousada proposta de reforma trabalhista para cacifá-lo novamente junto ao núcleo do capitalismo brasileiro e global.

A polarização que nos interessa passa ao largo dessa disputa intestina. Devemos criar um arco de forças que imponha uma contraofensiva em torno dos temas que têm unificado a direita e que colocam nosso passado, presente e futuro em regateio e venda.  Injeção maciça de democracia direta para salvar nosso moribundo regime legal. Um programa mínimo que deve ser objeto de amplo debate e mobilização. Que seja convocado um plebiscito nacional para que se delibere acerca do modelo de uso e de controle dos recursos naturais (Pré-Sal incluído), acerca dos caminhos para a efetivação do sistema de seguridade social e para o fortalecimento da Previdência pública, a respeito da definição do que seja ajuste ou arrocho fiscal e o sistema da dívida e acerca de qual regime de representação política e eleitoral convém aos trabalhadores e à juventude do país.

Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, doutor em Planejamento Urbano e Regional. É professor da Universidade Federal de Rondônia. 



A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania

sábado, 19 de março de 2016

GRUPO TEATRAL, PROCESSOS CRIATIVOS E ALIENAÇÃO


Adailtom Alves Teixeira[1]

RESUMO
O artigo discute o ajuntamento em grupo e o processo de criação teatral coletivo e colaborativo, bem como as possibilidades de desalienação contidas nesses processos artísticos e organizacionais.
PALAVRAS CHAVE: Grupo Teatral; Criação Coletiva; Processo Colaborativo; Alienação

ABSTRACT
The article discusses the gathering group and the collective and collaborative theater creation process as well as the possibilities of no alienation contained in these artistic and organizational processes
KEYWORDS: Theatrical Group, Collective Creation, Collaboration Process; Alienation

O grupo teatral e seus processos de criação
Por que artistas fazedores de teatro se juntam em grupo para realizarem suas atividades? Seja por desconhecimento, por ausência documental ou por idiossincrasia decorrente da natureza classista daqueles que escrevem a “história do teatro” e, propositalmente, deixam de lado a história dos artistas populares, seja por questões contingenciais ou decorrente de arbítrio, os artistas populares, sempre se juntaram em bandos, em grupos. Em sentido popular, andar em grupo ou fazer parte de um grupo é uma tática de sobrevivência, pois aí se cria uma rede de solidariedade, na qual um membro tende a fortalecer o outro.
Iná Camargo Costa, alinhada a um pensamento em arte que discute os pressupostos sociais e estéticos, afirma que a raiz dos grupos teatrais modernos estaria em André Antoine e as estratégias, no Teatro Livre, formado na estética naturalista. No Brasil, o Teatro de Arena, segundo a autora “[...] um dos raros casos de nossa experiência cultural em que as ideias estavam no lugar”[2], seria o nosso marco zero do teatro de grupo, já que nele não havia um investidor, como no Teatro Brasileiro de Comédia. Além disso, a realidade brasileira começou a adentrar a cena, o que gerou contradições no seio daquele coletivo, pois propostas mais radicais iriam se destacar no grupo, dando origem aos Centros Populares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE): “Por isso podemos dizer que o Arena é nosso marco zero e que o CPC da UNE é o nosso limite”[3].
Luiz Carlos Moreira, diretor do Grupo Engenho – coletivo que surgiu em 1979 e, desde os anos 1990, dirigiu-se à periferia para realizar seus projetos –, no Café Teatral,[4] afirmou que a organização de fazedores de teatro em grupo “[...] não é uma opção, mas sim falta de opção”, compreendendo que os artistas passaram a se reunir em grupo exatamente porque não havia empresários dispostos a correr os riscos nesse meio, pois não há mercado para o teatro. E já que não existe mercado, a única possibilidade de produzir é em grupo. Ao discorrer sobre o processo de formação dos grupos na cidade de São Paulo, afirmou que, entre os grupos surgidos nos anos 1970 e 1980, houve a tentativa de “empresariar” suas produções por meio de empréstimos ou cotizações, isto é, por meio das cotas de capital, a parte de uma sociedade, o valor líquido com o qual cada um dos sócios inicia uma empresa. A busca pela profissionalização do trabalho em grupo, bem como pela autonomia, levou à criação, na cidade de São Paulo, por exemplo, da Cooperativa Paulista de Teatro[5]. Dessa forma, os grupos poderiam produzir seus espetáculos e dispô-los no “mercado”. Mas essa tentativa de criar o tal mercado nunca deu muito certo e, portanto, o profissional naufragou. Segundo Moreira: “Profissional é aquele que vende seu trabalho para um produtor, empresário, patrão. Eu só me defino e existo como profissional na relação com meu patrão. Se ele desaparecer, eu desapareço” (2010: 34). Desse ponto de vista, em um grupo, não há o profissional, já que não há patrão, pois não existe mercado; mesmo assim, existem as pessoas que se juntam em torno do objetivo de criar espetáculos, de fazer teatro. 
Aliado ao desejo de fazer teatro, desde o Teatro de Arena, cresceu entre os artistas a necessidade de falar da realidade brasileira em cena, nasceu “[...] o desejo de se expressar e não apenas de atuar” (MOREIRA, 2010: 34).
Portanto, ao se pensar acerca do grupo teatral, organizado de forma artesanal, vê-se que ele não cabe no sistema capitalista da forma como está posto. Por outro lado, os grupos se veem obrigados a se enquadrar em outras organizações a fim de participar do sistema como ele está posto, gerando certa esquizofrenia interna. Organizam-se de forma diferenciada, mas na prática, e por uma questão de sobrevivência, se veem obrigados a driblarem o que são de fato. Ou seja, na prática, o grupo é um coletivo composto de diversos sujeitos que, em certa medida, abrem mão da individualidade em nome da identidade coletiva; atuam de forma horizontal, não hierarquizada; dominam ou participam de todo o processo de produção. No entanto, para a sociedade, especialmente para os gestores públicos e instituições culturais, só são reconhecidos como pessoa jurídica que, na atualidade, demanda uma organização hierarquizada. Assim, criam empresas para poderem participar da sociedade.
Mas a questão continua: afinal, o que é um grupo teatral? Um grupo teatral é a união de pessoas em torno de um projeto, de um objetivo comum e, de modo geral, no ofício aqui apresentado, com organização horizontal. Essa forma de organização ampliou-se nos anos 1990, não por acaso época de chegada do neoliberalismo ao Brasil.
Se o grupo se organiza em torno de uma identidade, de objetivos comuns, levando para a cena sua realidade e se, em um primeiro momento, a união de pessoas deu-se na tentativa de produzir e adentrar o “mercado”, é preciso não esquecer também de outros elementos que nortearam o surgimento dos grupos. O primeiro deles é o próprio combate ao mercado, uma tentativa de dizer não à privatização da cultura e do ser humano. Outro ponto que os grupos passaram a combater: hierarquização do processo de criação, particularmente contra a hegemonia do diretor e do autor, de modo que todos pudessem fazer parte do processo de criação e que nenhuma das partes fosse mais importante que outra, mas sim que caminhassem juntas com o objetivo de expressar o que coletivamente havia sido definido. É uma forma de organização, portanto, que exige solidariedade entre seus integrantes. E como afirma Eliane Ganev:

[...] a solidariedade é atributo indispensável na perspectiva da superação da alienação – compreendida como possibilidade de reapropriação [...] da sua riqueza material e espiritual, ou ainda, como possibilidade de humanização dos processos pelos quais homens e mulheres objetivam a si mesmos, corporificando no tempo e no espaço a sua riqueza: humanização dos sentidos e dos modos de produção social da vida (1999: 33).

Considerando os aspectos já descritos, se o grupo teatral representa, por um lado, a precarização de trabalho, por outro, o fato de seus integrantes serem donos da própria mão de obra e estarem organizados horizontalmente, baseados em forte solidariedade interna, tende a levá-los à desalienação; que se reflete também em suas criações; estas, por sua vez, ao se apresentarem como elemento de crítica à sociedade, desnaturalizando a realidade, tendem a chacoalhar os espectadores em sua visão de mundo.
Assim, do combate à hierarquização e ao mercado, sem deixar de lado a necessidade de expressar sua realidade, surgem os métodos de criação, primeiramente coletivos e, depois, o que passou a ser conhecido como processo colaborativo. Sem pretensão de esgotamento do assunto, passemos à discussão da criação de forma coletiva ou colaboracionista.
Segundo Luciana Magiolo (2006), os processos de criação coletiva são desencadeados no fim da década de 1950. Esses processos surgiram com o objetivo de eliminar as hierarquias nos grupos e do desejo de refletir sobre a realidade, bem como da vontade de participar das decisões políticas. A criação coletiva foi se aperfeiçoando nos fóruns de ideias, isto é, em debates que os grupos realizavam com o público, entre grupos e com estudiosos. Segundo Magiolo, Enrique Buenaventura, do Teatro Experimental de Cali (Colômbia), é uma das pessoas que sistematizaram as propostas que se irradiaram pela América do Sul. Para ilustrar um pouco essas proposições, vale destacar a experiência do Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV), grupo paulistano que nasceu em 1966 e que, desde a década de 1970, realiza seus trabalhos de forma coletiva. Para César Vieira, no livro Em busca de um teatro popular (2007), nesse tipo de proposição quem detém a decisão é sempre o coletivo, e no caso do TUOV todas as decisões são tomadas por consenso. No processo coletivo, existem as comissões. César Vieira, em organograma do citado livro (2007: 118), apresenta quatro comissões: artística, administrativa, espetáculos e cultural, sendo que cada uma delas se subdivide em cinco comissões.
Tomemos, então, como exemplo, o processo de criação de um espetáculo do TUOV, composto de dez etapas: 1) é eleito um tema; 2) escolhe-se a estrutura popular para a montagem (bumba-meu-boi, marujada etc.); 3) pesquisa do tema e da estrutura; 4) com base nos dados coletados, organizam as fichas dramáticas com sugestões de conflitos e de personagens; 5) criação do quadro dramático ou do roteiro geral, que será entregue à comissão de dramaturgia; 6) criação do texto-base; 7) submissão do texto-base ao coletivo que, após os debates, realizarão cortes, proporão modificações e aprovarão o texto a ser montado; 8) produção do espetáculo; 9) apresentação do espetáculo ao público, seguido de debate com vistas a propostas de mudanças; 10) mudanças apontadas pelo público são acrescentadas. Dessa forma, o TUOV chega ao espetáculo final, criado coletivamente.
Cada processo criativo ou colaborativo é único, sendo possível estabelecer as diferenças apenas caso a caso. Quanto as diferenças de termos, o vocábulo colaboracionista surgiu nos anos 1990, divulgado especialmente pelo Teatro da Vertigem (São Paulo). Segundo Stela Regina Fischer (2003: 43), nem mesmo os integrantes desse grupo sabem muito bem a origem do termo. Ainda de acordo com Fischer, foi em decorrência de certo preconceito em relação ao teatro coletivo desenvolvido nos anos 1970, sob a pecha de amador e anarquista, que fez surgir o termo colaborativo. Se na prática do teatro coletivo aparentemente não havia sistematização (o que pode ser questionado pela prática do TUOV), o teatro colaboracionista, por surgir em grupos ligados a universidades, pretendeu se diferenciar do anterior, ao se apresentar como grupo de pesquisas estéticas e de rigor técnico. Adélia M. Nicolete afirma que há outros termos na prática contemporânea, mas que todos apontam para um resultado:

Processo colaborativo, participativo; método coletivo, montagem cooperativa ou interativa. São muitas as maneiras com que se vem tentando nomear um processo de construção do espetáculo contemporâneo que se caracteriza, basicamente, pela equiparação das responsabilidades criativas (2005: 10).

Diante do exposto, torna-se patente que os grupos, nesse processo histórico, romperam com certa hierarquia e vem compreendendo que sua mão de obra e o que produzem lhes pertence. Passos importante para se conscientizaram também do sistema no qual estão inseridos. Assim, se organizaram em coletivos maiores, movimentos políticos que lutaram e lutam por políticas públicas que contemplem a categoria teatral. E a década de 1990 foi fértil nesse sentido, pois nesse período surgiram o Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo, no início da década; o Movimento Arte Contra a Barbárie (que apesar de ligado à cidade de São Paulo, ganhou dimensão nacional ao inspirar outros movimentos); o Movimento Redemoinho e a Rede Brasileira de Teatro de Rua. Por um lado, se em dado momento da história o chão da fábrica alienou os trabalhadores, por outro, e de modo dialético, juntou-os, possibilitando sua organização política, levando-os ao processo de conscientização e de luta; o mesmo é possível afirmar sobre os trabalhadores do teatro: a ausência de mercado os levou a se juntarem em grupos, permitindo que refizessem seus processos de criação, bem como avançassem na luta política.
É possível afirmar, portanto, que o processo em grupo pode favorecer a conscientização das pessoas que o constitui, seja como sujeitos inseridos em determinada sociedade, seja como indivíduos pertencentes a uma classe. Afirmamos que pode, pois o processo não é categórico, mas sim dialético. Como em um grupo teatral todos são donos da própria mão de obra e participam do processo de produção do início ao fim, esse caminho não os aparta daquilo que constroem, isto é, de suas obras. Em tese, esse processo leva-os à desalienação artística e, consequentemente, à desalienação social, posto o teatro ser uma atividade social. No entanto, é importante frisar que no sistema capitalista a desalienação nunca será plena (MARX, 1983).

Alienação e teatro

Alienação em latim se diz alienus (outro), logo, é tudo aquilo que está alheio, apartado de nós, ainda que tenha sido criado pelos indivíduos.

A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, dão independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma [...], não se reconhecem na obra que criaram, fazendo-a um ser-outro separado dos homens, superior a eles e com poder sobre eles (CHAUÍ, 1995: 170).

Para Marilena Chauí, em Convite à filosofia (1995: 172-3), há três formas de alienação na sociedade moderna: a) alienação social, “[...] na qual os humanos não se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas”, aceitando-as passivamente ou se rebelando individualmente contra elas, como se fosse possível vencer “[...] a realidade que os condiciona”. Em ambos os casos, a sociedade é o outro, apartada dos sujeitos; b) alienação econômica, na qual aqueles que produzem – os trabalhadores – “[...] não se reconhecem como produtores, nem se reconhecem nos objetos produzidos por seu trabalho”, observando-se aí dupla alienação, já que o próprio trabalhador torna-se mercadoria ao vender sua força de trabalho, sem perceber que, nesse ato, torna-se coisificado e, depois, o trabalhador-mercadoria produzirá outras mercadorias com as quais passam a se relacionar cotidianamente, esquecendo-se que em cada mercadoria foi dispendido trabalho humano. Desse modo, as mercadorias ganham autonomia, “[...] deixam de ser percebidas como produtos do trabalho e passam a ser vistas como bens em si e por si mesmas”; c) e, por fim, a alienação intelectual, fruto da separação do trabalho material e do trabalho intelectual. Daí decorre o preconceito de que o trabalho manual não requer conhecimento, mas tão somente habilidade manual. O intelectual, por sua vez, pode vir a mergulhar em tripla alienação, pois muitas vezes ele se esquece que suas ideias decorrem da classe à qual pertence. De igual maneira, ele ignora que as ideias que produzem visam explicar a realidade na qual ele próprio está inserido, esquecendo-se de que elas não estão gravadas nessa realidade, como se ele apenas as descobrisse, acreditando que as ideias existem por si mesmas. “As ideias se tornam separadas de seus autores, externas a eles, transcendentes a eles: tornam-se um outro” (CHAUÍ, 1995: 173. Grifo da autora.).
Com base na observação desses pontos, o grupo teatral servirá de referência para a discussão da alienação econômica e da alienação intelectual observada por Marilena Chauí, buscando desvelar de que maneira os coletivos teatrais, por estarem organizados em grupo, teriam mais facilidade de se desalienarem.
Ainda que não se possa generalizar, na forma de grupo aqui entendida, não há venda de força de trabalho entre seus integrantes[6], não há patrão, já que se constitui a partir de indivíduos imbuídos de um desejo de se expressar artisticamente. Como produtores, os artistas não se coisificam, isto é, não vendem sua força de trabalho nem se apartam daquilo que produzem, a saber, seus espetáculos. Esse primeiro processo de desalienação é de fácil compreensão, já que a obra artística tem valor de uso, não de troca; o espetáculo até pode ser inserido no “mercado” pois, no capitalismo, tudo tende a virar mercadoria. No entanto, as obras artísticas, ou parte delas, visam alimentar “os valores espirituais do homem [que] são, na verdade, aspectos da plena realização de sua personalidade como um ser natural” (MÉSZÁROS, 2009:175). Elas visam à formação dos sentidos, isto é, têm por objetivo humanizar o homem, pois não basta nascermos entre os seres humanos; é necessário um processo de humanização, como afirmou Karl Marx: “A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui” (apud MÉSZÁROS, 2009: 182). Dessa forma, as obras artísticas só têm sentido para o homem como valor de uso. Ainda que, em algum momento, a sociedade capitalista solicite que as obras estabeleçam uma relação de troca – caso em que os artistas são contratados para uma apresentação –, mesmo assim, nesse momento, os produtores não estão/são apartados da obra teatral, e o espetáculo não deixa de ser do coletivo teatral, pois seus criadores são produtores e “produto" ao mesmo tempo. Dessa maneira, a obra jamais ganha autonomia de seus produtores em forma de mercadoria. Ainda que ela, ao ser apresentada e fruída pelo público, seja autônoma, ganhando diversos significados para aqueles que a fruíram.
Poderiam se questionar se, nesse momento, ao venderem seus espetáculos – posto que os atores são os criadores e, em certa medida, a obra, pois não se pode realizar um espetáculo teatral sem eles – não estariam vendendo sua força de trabalho. Segundo Karl Marx, em Salário, preço e lucro (1978), a venda da força de trabalho ocorreria no sistema assalariado. Marx afirma ainda que: “A força de trabalho de um homem consiste, pura e simplesmente, na sua individualidade viva” (1978: 81). É o espetáculo teatral, obra/produto do grupo, que vai ao mercado, pois ele, em tese, é fruto de criação coletiva. Portanto, não há venda de força de trabalho, mas tão somente negociação com um produto ou obra artística[7], apenas por determinado tempo: a duração do espetáculo. Essa troca no “mercado” traduz-se em lucro, já que o grupo teatral permanece como proprietário da obra. Vale salientar que, nessa perspectiva, o teatro em grupo é um trabalho improdutivo. Marx define trabalho produtivo como aquele que se troca por capital, “[...] para o que é preciso que os meios de produção do trabalho e o valor em geral, dinheiro ou mercadoria, se convertam, antes de mais nada, em capital e o trabalho em trabalho assalariado, na acepção científica da palavra” (2010: 151). Essa denominação de trabalho produtivo ou improdutivo não decorre das características do trabalho, “[...] mas das formas sociais específicas, das relações sociais de produção no interior das quais o trabalho se realiza” (MARX, 2010: 151). No entanto, isso não significa que a produção teatral não possa se tornar um trabalho produtivo:

Um ator, inclusive um palhaço, pode ser, portanto, um trabalhador produtivo se trabalha a serviço de um capitalista (de um empresário), ao qual restitui uma quantidade maior de trabalho do que a que recebe dele sob a forma de salário, enquanto um alfaiate que vai à casa do capitalista para arranjar-lhe as calças, criando não mais que um valor de uso, não é, pois, mais que um trabalhador improdutivo. O trabalho do ator se troca por capital, o do alfaiate, por lucro. O primeiro cria mais-valia; o segundo apenas consome lucro (MARX, 2010: 151).

Assim, para Marx, a distinção de trabalho produtivo ou improdutivo se faz na relação, “[...] a partir do ponto de vista do capitalista e não do ponto de vista do trabalhador” (2010: 151. Grifo do autor). O que se percebe é que um mesmo trabalho pode vir a ser produtivo ou improdutivo. Desse ponto de vista, a produção de um grupo teatral só faz sentido como valor de uso, logo, improdutivo.
Com relação à alienação intelectual, isto é, a divisão entre o fazer e o pensar, ainda que alguns grupos mantenham certa divisão entre as funções de atores, diretores, autores, cada vez mais essas funções se misturam, todos participam da construção da obra final. E como afirma Marx: “A divisão do trabalho somente se torna uma verdadeira divisão quando se separam o trabalho físico e o trabalho intelectual” (2010: 138). No entanto, sabe-se que ao longo do processo de qualquer pesquisa ou de criação de espetáculos em grupo, pensar e fazer se confundem. Há um movimento dialético da prática para a reflexão, retornando ao fazer em saltos qualitativos. No processo de criação de um espetáculo instaura-se, portanto, a práxis.
Por outro lado, no campo intelectual propriamente dito – acadêmicos, pensadores e outros tantos profissionais que escrevem sobre o trabalho dos grupos ou registram a história do teatro –, salvo raríssimas exceções, quase não se encontram publicações voltadas à história do teatro dos grupos populares, bem como de suas práticas, pois, ao escreverem do ponto de vista da classe dominante, os intelectuais retiram o que a essa classe não interessa, restando apenas, como nomeou Bertolt Brecht (2005), um teatro culinário. Em virtude disso, muitos desses intelectuais continuam alienados. Se “a cena se dividiu”, sobretudo com a ascensão da burguesia, como afirma Gerd A. Bornheim, travou-se uma luta para reconduzir o teatro ao seu lugar de origem:

Esse processo de marginalização como que condena os teatristas a uma luta que postula a reinvenção do próprio sentido do teatro, e a luta solerte, que se prolonga faz já quase um século. Entre nós também, são as mesmas lutas que eclodem, embora com o atraso de praxe e assimiladas, nos primeiros anos após a Segunda Guerra, as lições que nos trouxeram diretores de cena europeus, lutas motivadas pelas mesmas razões: a realização de um teatro nosso, de cunho eminentemente popular (1983:11).

Essas duas formas de alienação e seus respectivos processos de desalienação conduzem os indivíduos e, consequentemente, os grupos, ao processo de desalienação social, combatendo a primeira forma de alienação. De que forma? A compreensão da opressão imposta pelo sistema capitalista pode levar ao engajamento social e político, juntando-os em movimentos políticos e levando-os a uma consciência de classe. Entretanto, todo esse processo não ocorre de forma rápida, bem como não é suficiente pertencer a um grupo teatral para que ele ocorra, pois, como afirma Mauro Luis Iasi:

A consciência de classe não está apenas na forma coletiva enquanto produto ou em suas representações institucionais acabadas, assim como não pode se reduzir a manifestações individuais que compõem estas formas coletivas, mas no movimento em que umas se transformam nas outras (2008: 74).

O processo é dialético. Para Walter Benjamin, em O autor como produtor (1996), o escritor progressista deve lutar ao lado do proletariado, orientando-se em função daquilo que seja útil para essa classe. Benjamin, no mesmo ensaio, lembra o teatro épico brechtiano como um avanço, na medida em que transformou o confronto com a arte burguesa em coisa sua, isto é, em algo que o outro lado recusa. É importante frisar também que não se está propondo aqui uma desalienação transcendental por meio do simbólico, haja vista que o processo de desalienação aqui discutido se dá em relação àqueles que praticam o teatro e não em quem recebe, ainda que estes, por meio das obras, possam estranhar um mundo naturalizado.
Em relação à consciência de classe, Mauro Iasi estabelece três processos, afirmando que eles ocorrem de forma dialética. Cada momento contém elementos para sua superação, pois suas formas apresentam contradições que, “[...] ao amadurecerem, remetem à consciência para novas formas e contradições, de maneira que o movimento se expressa num processo que contém saltos e recuos” (2007: 12). Segundo o autor, fundamentado nas teses de Karl Marx, a consciência de classe “[...] não se contrapõe à consciência individual, mas forma uma unidade” (2007:13), na medida em que as condições particulares sintetizadas levam a uma consciência de classe. Os três processos de consciência são os seguintes: consciência de si, consciência em si e consciência para si ou, dito de outra forma, consciência individual, consciência de grupo e consciência revolucionária.
A primeira forma de consciência é formada a partir do próprio meio; são as representações que as pessoas têm da vida e de seus atos. Trata-se da inserção no mundo como pessoa. Apesar de ser uma representação mental do mundo objetivo, é subjetiva. Sendo assim, é “[...] uma realidade externa que se interioriza” (IASI, 2007: 14). É, portanto, especialmente adquirida no seio familiar. Sabemos, os sujeitos nascem no mundo da cultura, isto é, em um mundo já feito, logo, na relação social, o sujeito internaliza a parte e generaliza-a, de maneira a perceber o todo (mundo) pela parte (sua vida). “Evidente que aquilo que fica interiorizado não são as relações em si, mas seus valores, normas, padrões de conduta e concepções” (IASI, 2007: 18). Dessa forma, o mundo se “naturaliza” e o sujeito forma o senso comum e com ele se conforma. Mesmo quando toma contato com outras instituições como a escola, o serviço militar ou o trabalho, tão diferentes da família (formadora da “personalidade”), instituições por meio das quais os sujeitos podem vir a adotar um papel ativo, menos dependente, já que distintas da família, nada garante que o potencial dos sujeitos se manifeste, podendo tão somente “[...] reforçar as bases lançadas na família” (IASI, 2007: 19). Assim, os cidadãos tornam-se disciplinados, e essa consciência passa a ser uma forma de alienação, visto que se toma a parte pelo todo. “A ideologia encontra na primeira forma de consciência uma base favorável para sua aceitação. As relações de trabalho já têm na ação prévia das relações familiares e afetivas os elementos de sua aceitabilidade” (IASI, 2007: 22). O autor afirma ainda que essa alienação não se dá porque o sujeito está desvinculado da realidade, mas porque a naturaliza, sua visão de mundo está descontextualizada de sua história.
Claro que podem surgir contradições, o que permitirá que os sujeitos avancem, pois a família mediatiza aquilo que foi determinado; no entanto, as representações mentais das forças produtivas são historicamente determinadas e, como as forças produtivas, transformam-se, geram contradições.

Eis aqui uma contradição insolúvel capitalista: enquanto as forças produtivas devem constantemente desenvolver-se, as relações sociais de produção, sua manifestação e justificativa ideológica devem permanecer estáticas em sua essência. Com o desenvolvimento das forças produtivas, acaba por ocorrer uma dissonância entre as relações interiorizadas como ideologia e a forma concreta como se efetivam na realidade em mudança. É o germe de uma crise ideológica (IASI, 2007: 27).

Se há novas relações com o mesmo potencial de interiorização, gerando outros valores, isso se reflete em condutas variadas, em novos comportamentos. Dessa forma, os indivíduos buscarão compreender o novo, a despeito dos próprios valores ultrapassados e arraigados. Surge daí um conflito interno e externo, levando-o a um estado de revolta que, mesmo assim, ainda não é a sua superação. Como afirma Iasi: “As relações podem não ser mais idealizadas; são agora vividas como injustas e existe a disposição de não se submeter; no entanto, ainda aparecem com inevitabilidade: ‘sempre foi assim’” (2007: 28). Dessa forma, só em determinadas condições a revolta pode dar um salto qualitativo e passar para um novo estágio de consciência. Para tanto, existe uma precondição: o grupo.

Quando uma pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas circunstâncias pode ver em outras pessoas sua própria contradição. Esse também é um mecanismo de identificação da primeira forma, mas aqui a identidade com o outro produz um salto de qualidade (IASI, 2007: 29).

Chega-se, assim, à segunda forma de consciência: consciência de si ou consciência reivindicatória. Ao se perceber parte de um grupo, que luta contra as mesmas injustiças, o indivíduo começa a vislumbrar mudanças. As lutas sindicais, os movimentos sociais e culturais são estágios dessa consciência. “O que há de comum nesses casos particulares é a percepção dos vínculos e da identidade do grupo e seus interesses próprios, que conflitam com os grupos que lhe são opostos” (IASI, 2007: 30). Ainda que essa forma de consciência continue a tomar como base as relações imediatas, já não é mais do ponto de vista do indivíduo, mas sim do grupo, da categoria, podendo, portanto, evoluir para uma consciência de classe.
Quais são as contradições apresentadas nesse estágio ou nesse processo de consciência? É evidente que os grupos, as categorias, pela luta, negam as formas de produção capitalista, e isto pode levar à superação. Entretanto, mesmo negando, continuam a produzir dentro de um sistema cujas normas continuam as mesmas. Ainda que avancem em suas conquistas, mesmo que deem diversos passos, são apenas pequenas reformas. Tome-se como exemplo uma greve de trabalhadores de determinada categoria, que se organizam e lutam porque tomaram consciência da exploração imposta. Desse ponto de vista, esses trabalhadores estão se afirmando como classe. Mas vale destacar que, mesmo que se organizem e saiam vitoriosos dessa luta, os trabalhadores retomarão seus afazeres em igual modelo de produção. Dessa forma,

[...] o proletário, ao se assumir como classe, afirma a existência do próprio capital. Cobra desse uma parte maior da riqueza produzida por ele mesmo, alegra-se quando consegue uma parte um pouco maior do que recebia antes. A consciência ainda reproduz o mecanismo pelo qual a satisfação do desejo cabe ao outro. Agora, ela manifesta o inconformismo e não a submissão, reivindica a solução de um problema ou injustiça, mas quem reivindica ainda reivindica de alguém. Ainda é o outro que pode resolver por nós nossos problemas (IASI, 2007: 31).

Ao considerar as ideias do teatro épico brechtiano, Walter Benjamin, em O autor como produtor (1996), esclarece que a passagem do senso comum para a consciência crítica, segunda forma de consciência, pode levar os trabalhadores à falsa ideia de que dominam as máquinas (estrutura), quando, na verdade, são dominados por ela. Por isso, na concepção de Benjamin, ao escritor, por exemplo, não cabe apenas escrever, ainda que seja de forma combativa:

Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo lugar, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera de produção, ou seja, quanto maior sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores. (1996: 131-2. Grifo do autor).

Para tanto, está implícita uma questão pedagógica, ou seja, não se trata apenas da conscientização individual e do grupo, é preciso engajar outros trabalhadores nesse processo.
Não se pretende aqui diminuir a força das lutas travadas em greves, fundamentais para a transformação da consciência. Mas é importante deixar claro que essas lutas melhoram a vida dos trabalhadores, mas não há transformação do ponto de vista dos meios de produção e do sistema como um todo. Ainda que os trabalhadores estejam se afirmando como classe, é urgente que se tornem conscientes de todo o processo, como afirma Iasi: “Conceber-se não apenas como um grupo particular com interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas também se colocar diante da tarefa histórica da superação dessa ordem” (2007: 32). Continua o autor:

A verdadeira consciência de classe é fruto dessa dupla negação; num primeiro momento o proletariado nega o capitalismo assumindo sua posição de classe, para depois negar-se a si próprio enquanto classe, assumindo a luta de toda a sociedade por sua emancipação contra o capital (IASI, 2007: 32).

Afirma-se, pelo exposto, que os fazedores de teatro, ao se organizarem em grupo, podem chegar a uma consciência de classe, e acredita-se que muitos chegaram a esse estágio no processo de conscientização. A prova dessa consciência é que os grupos teatrais têm se juntado em movimentos reivindicatórios, cobrando do Estado políticas públicas de cultura, de maneira a criarem melhores condições para si e para que sua arte chegue aos demais cidadãos e tem também se juntado aos movimentos sociais, reforçando suas lutas. Por outro lado, percebe-se que ficar apenas nesse estágio (mesmo sendo fundamental para a luta) não é suficiente para a transformação do sistema no qual estão inseridos. Claro que a grande transformação não cabe ao teatro, embora, como elemento de disputa do simbólico, tenha papel importante na luta junto aos demais trabalhadores. Como afirma Rodrigo Dantas: “Entramos aqui nos subterrâneos da luta de classes, em que a luta pelo domínio da subjetividade antagônica do trabalho se materializa na luta pelo domínio do inconsciente, do imaginário, da própria produção desejante do proletariado” (2008: 96).
Quais são os riscos inerentes ao segundo estágio de consciência? Corporativismo, burocratização ou aristocratização operária – termo utilizado inicialmente para demonstrar o enriquecimento dos trabalhadores ingleses na época vitoriana, fazendo com que eles arrefecessem os ânimos na revolução. Depois, o termo foi generalizado para toda ascensão material por parte de alguns trabalhadores que, mesmo “enriquecendo”, não deixam sua condição de trabalhador, embora não se reconheça mais entre os seus. Dessa forma, a consciência pode levar a uma passividade diante de fatos incontroláveis, podendo, inclusive regredir, pois como alerta Iasi: “O processo de consciência não é linear, pode e muitas vezes regride a etapas anteriores” (2007: 33).
Outro ponto a destacar: “O amadurecimento subjetivo da consciência de classe revolucionária se dá de forma desigual, depende de fatores ligados à vida e à percepção singular de cada indivíduo” (IASI, 2007: 35). Por isso mesmo pode haver dissonâncias e disparidades entre alguns indivíduos e sua classe, entre indivíduos e seu grupo. Isto é, o indivíduo pode atingir a consciência revolucionária até mesmo em um grupo alienado. “Por isso, o indivíduo que se torna consciente é, antes de tudo, um novo indivíduo em conflito” (IASI: 2007: 36).

A sociedade capitalista, por mais hipócrita que isso possa parecer, se autoproclama a sociedade da harmonia. O indivíduo em conflito é isolado como se não expressasse uma contradição, mas fosse ele mesmo a contradição, mais que isso, o culpado por sua existência. Enquanto isso, o alienado recebe o título de “normal” (IASI: 2007: 37).

É dessa forma que o indivíduo em conflito, ao verificar a ausência de elementos revolucionários junto à sua classe, pode sofrer “depressão”, como afirma Iasi, ou regredir até mesmo ao estágio de revolta.
Quais as contribuições de um coletivo teatral? Se o compartilhamento de todo o processo criativo, bem como de toda a sua organização interna, pode levar os seus criadores à desalienação, suas obras, seus espetáculos podem suscitar no público o interesse pela reflexão sobre a realidade na qual estão inseridos. A arte é uma forma de conhecimento do mundo; sua importância aumenta ao realizar uma abordagem estética realista, em que a realidade do homem é o ponto de partida de sua criação, sabendo que ela “[...] não é um dado bruto ou um produto acabado e sim um movimento” (KONDER, 2009: 162); por outro lado, é importante saber que o conhecimento proporcionado pela arte não é um conhecimento cientifico.
Quanto ao significado de realismo, podemos tomar os pressupostos de Bertolt Brecht, que acredita que uma arte realista deve:

·         apresentar o sistema da causalidade social;
·         escrever do ponto de vista da classe que propõe as soluções mais amplas para as dificuldades mais urgentes em que se encontra a sociedade humana;
·         destacar, em qualquer processo, os seus pontos de desenvolvimento;
·         ser concreto e possibilitar a abstração (1973: 11).
 
Em um mundo globalizado, cujos mecanismos de alienação nos bombardeiam indistintamente, organizar-se em grupo, compartilhando todos os processos vividos pelos seus integrantes, num processo de autogestão[8], é contrapor-se à hegemonia capitalista; criar obras artísticas críticas, tomando a realidade como ponto de partida, é colocar-se em disputa simbólica; facilitar o acesso às obras, visando à troca de experiências, é levá-las para o principal campo de batalha, pois é aí que se pode dialogar diretamente com os trabalhadores.

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[1] Professor de teatro na Universidade Federal de Rondônia; Graduado em História, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; membro do Núcleo Paulistano de Fazedores e Pesquisadores em Teatro de Rua; membro do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE; ator e diretor teatral.
[2]              COSTA, Iná Camargo. O teatro de grupo e alguns antepassados. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/proximoato/pdfs/teatro%20de%20grupo/ina_camargo.pdf. Consultado em 16/05/2011.
[3]              Idem.
[4]              O Café Teatral aqui citado ocorreu em 01/09/2010 na Casa d`Oráculo, sede do Buraco d`Oráculo, grupo que realiza essa atividade desde 2005. O Café Teatral consiste em um debate com um convidado que discute determinado tema, via de regra, relacionado ao teatro, em volta de uma mesa de café. No projeto Narrativas de trabalho, voltado à precarização do trabalho, Luis Carlos Moreira foi chamado para discutir essa situação a que estão submetidos os grupos teatrais paulistanos e, por extensão, todo grupo teatral brasileiro.
[5]              Alexandre Mate, no livro Trinta anos da Cooperativa Paulista de Teatro: uma história de tantos (ou mais quantos, sempre juntos) trabalhadores fazedores de teatro, escreve sobre as contendas e as alegrias decorrentes da manutenção de uma cooperativa de artistas: “A história da Cooperativa Paulista de Teatro – uma cooperativa de produção de trabalho que luta até hoje pela regulamentação de um ramo de cooperativismo de cultura – caracteriza-se em uma trajetória repleta de contendas, de desentendimentos, de pertencimentos, de fases distintas e articuladas, de conquistas. [...] Funcionários, diretores, presidentes, associados, todos juntos lutando pela dignidade do trabalhador ligado às chamadas artes da representação, agrupado pelos princípios do cooperativismo. Trabalhador do teatro em situação de desemprego endêmico. Noites não dormidas, decorrentes de tantas preocupações com o tudo faltando ou com o gigantismo da entidade. Noites maravilhosamente dormidas pela sensação da conquista conjunta” (2009: 17. Grifo nosso).
[6]              No entanto, em certas condições, porque vivemos em uma sociedade capitalista, nada impede que o grupo, ao necessitar de determinado serviço, contrate um profissional para um trabalho específico, transformando-se, assim, em “patrão”. Não obstante, entre as pessoas que compõem o coletivo não há venda da força de trabalho.
[7]              Não é o caso de discutir aqui que a arte não é mercadoria, pois o exemplo serve apenas para o entendimento das relações com as quais os grupos lidam. E estamos entendendo produto como obra dos homens; logo o espetáculo é um produto criado pelo grupo de artistas nele envolvidos. Desse ponto de vista, toda obra teatral é coletiva.
[8]              Rafael Vecchio, no livro A utopia em ação (2007), que aborda a organização da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, afirma que a autogestão se opõe à heterogestão capitalista. Assim, a autogestão não está atrelada ao lucro, sendo uma prática que acena para uma mudança radical da sociedade em termos políticos, econômicos e sociais.

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Públicado originalmente na Revista Rebento - Revista de Artes e Espetáculos do Instituto de Artes da UNESP; e na Revista Rascunho da Universidade Federal de Uberlândia, em ambas as publicações houve pequenas modificações.