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segunda-feira, 7 de maio de 2018

“Brabas” questões trazidas à cena pela cia. La Casa



Alexandre Falcão de Araújo[1]

Na noite de 27 de abril de 2018, a pequena praça Nossa Senhora das Candeias, na cidade de Japaratinga, litoral norte de Alagoas, recebeu a apresentação de “A mulher braba”, da cia. La Casa, de Maceió. A apresentação aconteceu por meio do projeto “Circuito Alagoano de Teatro”, realizado pela cia. Nêga Fulô, também de Maceió, com recursos do prêmio Mestre Cicinho (do governo do estado) e em parceria com a prefeitura local.
O trabalho tem a direção e adaptação de Abides de Oliveira, importante artista teatral da cena alagoana, oriundo do coletivo Joana Gajuru, grupo do qual se desvinculou em 2015. Abides é responsável pela organização de publicações de referência na cena regional, como o catálogo dos grupos de teatro de rua do Nordeste (OLIVEIRA, 2014) e o catálogo de 15 anos do grupo Joana Gajuru (OLIVEIRA, 2010), além de ter sido colaborador do capítulo alagoano da “Cartografia do Teatro de Grupo do Nordeste” (YAMAMOTO, 2012), realizado pela cia. Clowns de Shakespeare.
Abides de Oliveira - Cia La Casa, em Japaratinga.
Além disso, recentemente Abides também entrou em cena no espetáculo “A mulher braba”, substituindo outro ator. Em cena, somam-se a ele as atrizes Ane Oliva e Tereza Gonzaga, o ator Gi Silva e o músico Gama Filho. Não por acaso, todos os atores e atrizes do elenco passaram pelo grupo Joana Gajuru, um coletivo de destaque na história do recente teatro alagoano. O diretor da cia. La Casa ressalta, inclusive, a influência dos grupos Imbuaça (de Aracaju, Sergipe) e Joana Gajuru no trabalho da La Casa, uma vez que a vertente do teatro popular, muito presente no teatro de rua alagoano, é a principal característica do trabalho em “A mulher braba”.
Na data da apresentação em Japaratinga, apesar da forte e insistente chuva que caiu ao longo do dia e até meia hora antes do horário marcado para a apresentação, o público compareceu em peso, assim que a chuva cessou. A maioria dos presentes era formada por moradores da comunidade, já que é período de baixa temporada e não havia muitos turistas hospedados na cidade. O público reagiu muito bem à apresentação, que conta a história de um pai e uma mãe ricos, que querem casar a filha, uma jovem brava e arredia. Mas, os pais só conseguirão “solucionar” o matrimônio da filha com o aparecimento de um jovem plebeu.
                De forma eminentemente épica, o espetáculo se inicia com a apresentação do elenco (com brincadeiras com os nomes das atrizes e dos atores) e suas personagens ao público. Com estrutura narrativa simples, as personagens-tipo logo são reconhecidas pelo público: o pai que tenta impor respeito, mas não consegue; a mãe mandona e autoritária; a filha brava e rebelde e o plebeu “astuto”.
                Como é característico de grande parcela do teatro popular, o elenco traz uma bela, simples e expressiva maquiagem, que ressalta os tipos das personagens. Além disso, joga bastante com o público, que participa e se diverte juntamente com as e os artistas. Nas palavras do diretor, o grupo tenta aproveitar ao máximo as interferências e participações do público, como aconteceu neste dia, na cena do casamento, em que, de improviso, duas crianças do público foram convidadas a fazer as daminhas de honra da noiva. Isso gerou uma situação muito curiosa e cômica, já que a cena estava longe de ser romântica, pois a noiva seguia bem brava, o que trazia um contraponto ao divertimento das crianças em cena.
               
Ane Oliva em A Mulher Braba
Outro ponto de destaque da encenação são as músicas, todas autorais e executadas ao vivo, que narram, contextualizam e dão uma atmosfera festiva para o espetáculo. Especificamente no dia em que assisti, houve uma dificuldade técnica em relação aos microfones head-set, em parte devido à chuva anterior à apresentação, pois não houve tempo para testá-los bem. Assim, eles acabaram não funcionando corretamente, o que levou o elenco, já durante a cena, a desistir de usá-los.
As questões tecnológicas ainda seguem como desafio para o teatro de rua, uma vez que se relacionam com, além de limites financeiros, diversos fatores como o clima, que não podem ser controlados em espaço aberto. Neste dia, especificamente, as dificuldades com os microfones causaram perdas na concentração das atrizes e dos atores e limitações de movimentação (já que quando eles se movimentavam mais rapidamente o equipamento deixava de funcionar). Após o grupo abandonar os microfones, sua movimentação e concentração melhorou e a voz falada esteve bem audível, mesmo sem amplificação. Apenas o canto ficou com volume mais baixo, sendo um pouco difícil perceber os arranjos propostos. Ainda em relação à parte musical, o competente músico e compositor Gama Júnior talvez também pudesse ser melhor utilizado em cena.
Tratando da movimentação, o grupo utiliza bem os procedimentos de entradas e saídas de cena e o uso de alguns espaços externos à roda, para o jogo entre o elenco e com o público. No entanto, o elenco esteve tímido em relação à construção das máscaras corporais, apoiando-se muito no texto e nas habilidades verbais, ficando aquém do potencial físico que a obra permitiria. Destaco, porém, o trabalho da atriz Ane Oliva, como “mulher braba” que, em diversos momentos, deu intensidade à sua máscara corporal, aproveitando-se do potencial oferecido pela personagem.           
Retornando à estrutura da narrativa, é importante contar que o texto montado pela cia. La Casa é uma livre adaptação do original “O Moço que casou com a mulher braba”, datado do século 14 e de autoria do escritor espanhol Don Juan Manuel. Tal obra recebeu uma nova versão, em 1903, do também espanhol Alejandro Casona. Abides ressalta que o texto original era muito mais violento, e também, podemos imaginar, extremamente machista. Na montagem da cia. La Casa, o texto tornou-se mais leve, com alterações de algumas cenas que não seriam aceitas nos dias atuais.
Ainda assim, a temática da montagem repercutiu e, em apresentações em Maceió, algumas militantes feministas se manifestarem contrárias à conclusão do espetáculo, em que a filha se casa com o plebeu, se submetendo a ele. Tais críticas ecoaram no grupo e a cena foi alterada, de forma que a real submissão da filha ao novo marido torna-se dúbia, na medida em que a personagem declara: “É uma hora servir e honrar o homem de sua casa”, ao mesmo tempo em que faz um gesto explícito para o público indicando que estava mentindo, que aquela não era sua real posição.
                Sensível ao posicionamento de mulheres do público, o grupo alterou o sentido final da obra, questionando a submissão da esposa em relação ao marido. Assim como na encenação de “Torturas de um coração”, da cia. Nêga Fulô (apresentada em texto anterior, neste mesmo blog), o humor popular e seus preconceitos são colocados em questão na atualidade, na medida em que nos perguntamos: estamos fazendo uma denúncia ou reforçando os estereótipos e relações de poder? Creio que as respostas a tais perguntas não são únicas, nem tão óbvias e devem ser sempre pensadas em relação ao contexto. Na capital alagoana, a encenação incomodou parte do público e foi alterada. No interior, já com a cena final adaptada, a impressão é de que o público (que talvez ainda viva ou veja mais frequentemente em seu cotidiano relações machistas, tidas como naturais) reconheceu a situação vivenciada pela mulher braba, mas apesar das críticas apresentadas na montagem à situação de opressão, ainda parece ficar contrário a personagem feminina central.
A mulher braba denuncia: “Fui obrigada a casar!” e, em outro momento, critica o público presente que gargalhava: “dançando com a miséria dos outros!”. No entanto, após o término da apresentação, uma senhora do público passa ao lado da roda e diz, de forma brincalhona, para a atriz Ane Oliva, ainda caracterizada como sua personagem: “_Case, mulé!”. Uma simples e espontânea participação de uma espectadora parece indicar certa concordância com os padrões machistas de relacionamento ainda predominantes em nossa sociedade.
As temáticas feminista e de gênero estão na pauta contemporânea do teatro de rua e vêm sendo abordadas em cena ou debatidas, por exemplo, pelos jovens coletivos femininos Mãe da Rua e Madeirite Rosa, ambos de São Paulo e pelo grupo Resta Nóis, de Florianópolis.  O desafio de pesar e medir, a cada momento, as escolhas estéticas e políticas para as cenas, seguirão no horizonte dos grupos que se aventuram a ir pra rua com suas obras e que têm seriedade e compromisso em seu fazer artístico, como é o caso da cia. La Casa. Dessa forma, creio que o que me cabe aqui é lançar dúvidas e reflexões, que deverão ser encaradas continuamente ao longo de nossas trajetórias e em diálogo com os movimentos sociais e com as parceiras e parceiros de nosso ofício e de nossas lutas.

Referências
OLIVEIRA, Abides de. Joana Gajuru 15 anos: memórias dos filhos de Joana. Maceió: Associação Teatral Joana Gajuru, 2010.
OLIVEIRA, Abides de. Beleza, cheguei agora! Grupos de teatro de rua do Nordeste. Maceío: 2014.
YAMAMOTO, Fernando Minicuci. Cartografia do teatro de grupo do Nordeste. Natal (RN): Clowns de Shakespeare, 2012.


[1] Ator, arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Circulando, improvisando e gerando muitas risadas: o divertido e importante trabalho da Cia. Nêga Fulô



Alexandre Falcão de Araújo[1]

Entre os dias 26 e 27 de abril passados, tive a oportunidade de acompanhar o projeto “Circuito Alagoano de Teatro”, realizado pela cia. Nêga Fulô, de Maceió, com recursos do prêmio Mestre Cicinho, do Governo do Estado de Alagoas.
                Foi uma oportunidade muito especial de conhecer um pouco da cena alagoana de teatro de rua e o contexto da produção e circulação artística para além da capital do estado. Como explica Régis de Souza, um dos fundadores e integrante do grupo, o projeto foi proposto para popularizar e promover a circulação dos espetáculos de rua da cia., mas também são convidados outros grupos do estado que atuam na rua. Assim, o circuito, que se encerrará no próximo dia 12/05, contemplará ao total 16 apresentações, em 09 cidades do estado, com oito espetáculos diferentes, dos grupos: Nêga Fulô, La Casa, Clowns de Quinta, Coletivo Volante, Turma do Biribinha e Associação Teatral das Alagoas -ATA. Por meio do projeto, o grupo proponente, juntamente com as prefeituras e grupos parceiros, consegue promover muitas (e importantes) ações com poucos recursos.
Cena do espetáculo Torturas de um coração, em cena Regis de Souza (Benedito)
e Diva Gonçalves (Marieta). Praça Nossa Senhora das Candeias, Japaratinga.
Foto: Alexandre Falcão
                Na etapa que pude acompanhar, as apresentações aconteceram na pequena de Japaratinga, com população estimada em pouco mais de 8.000 habitantes, no litoral norte de Alagoas. Na quinta-feira à noite na miúda praça Nossa Senhora das Candeias, a principal da cidade, em frente à prefeitura e ao lado da singela igreja colonial, inicia-se a montagem do espaço de encenação. As crianças são as primeiras a se aproximar. Converso com o jovem Caio, morador da comunidade e estudante do quinto ano do Ensino Fundamental. Pergunto se ele já viu teatro na cidade alguma vez, ele conta que viu, ali na mesma praça, mas há muito tempo atrás, quando ainda era bem pequeno, “como aquela criança ali”, e aponta outra criança menor, de cerca de cinco anos, que estava do outro lado da roda. Posteriormente tal informação é confirmada pela dedicada secretária de Cultura da cidade, Cida de Oliveira, que também lembra que a última vez que a cidade recebeu teatro foi há vários anos atrás.
                Como na maioria das cidades do país (IBGE, 2014), Japaratinga não possui equipamento específico para apresentação de teatro em espaço fechado, não tem um edifício teatral ou mesmo outro espaço adequado para uma apresentação teatral. Tal fato, por si só, já dá indicativos do valor do teatro de rua para a difusão e acesso à cultura em nosso imenso e desigual Brasil. Além da dimensão fundamental de acessibilidade geográfica e econômica, o teatro de rua, na maior parte dos casos, promove também o acesso temático (MATE, 2011), compartilhando criações artísticas com formatos diversos, mas que sempre buscam uma troca efetiva com o público, sem hermetismos formais.
                Esse foi o caso de ambos os espetáculos que pude assistir em Japaratinga: “Torturas de um coração”, com a cia. Nêga Fulô, e “A mulher braba”, com a cia. La Casa. Ambas as companhias, oriundas da capital alagoana, trabalham com o chamado teatro popular, característica marcante da cena de rua regional. Apresento a seguir uma leitura do espetáculo “Torturas de um coração”, de Ariano Suassuna, originalmente escrito para funcionar como um entremez para teatro de mamulengos, mas adaptado para teatro de rua na montagem da Cia. Nêga Fulô, sob direção de Glauber Teixeira.
                No elenco, a atriz Diva Gonçalves e os atores Alderir Souza, Daniel Dabasi, Moab de Oliveira e Regis de Souza, todos experientes e com aguçado jogo de improvisação com o público. Já no cortejo inicial, cantando e dançando, vindo pela rua em direção à praça, o elenco brinca com os passantes. O grande (em estatura e presença cômica em cena) Regis de Souza, caracterizado como Benedito, senta à mesa de um boteco na esquina da praça, junto às pessoas desavisadas que lá estavam, come da comida e bebe a cerveja que estava na mesa, o que gera gargalhadas de quem assistia do entorno e dos próprios “parceiros” da mesa de boteco.
                A estrutura da encenação, além de favorecer o jogo com o público, que acontece o tempo todo, se vale também de diversas músicas do cancioneiro popular nordestino - cantadas ao vivo com acompanhamento percussivo - como “Pisa na Fulô” (de João do Vale) e “Procurando Tu” (de Antônio Barros) que imediatamente são reconhecidas pelos espectadores.
                Logo no início da obra, são apresentadas as personagens: Benedito (o malandro popular, cuja figura pode ser comparada à de Mateus, do cavalo-marinho e de diversos folguedos como o boi, ou ainda ao Brighella, da Commedia dell´Arte[2]), os valentões (mas, nem tanto) Cabo Setenta e Vicentão, o belo e afeminado (ou suspeitoso, nas palavras de Suassuna) Afonso Gostoso e a ingênua (mas também, nem tanto) Marieta. No enredo simples e funcional, todos as figuras masculinas disputam o amor de Marieta, mas são vencidas por Benedito que, apesar de ser o mais pobre e sofrer preconceito por ser negro é o mais astuto e passa a perna nos demais.
                A bufonaria é a marca do texto e a da atuação da cia. Nêga Fulô, porém vale ressaltar que esta bufonaria quase o tempo todo é horizontal: o jogo se dá de igual para igual. As personagens fazem “zoada” (como se diz popularmente em Alagoas) com o público e vice-versa, além de fazerem piadas com si próprios, como atores e personagens. Em Japaratinga, onde secretários municipais e um vereador também assistiam e se divertiam com a apresentação, sobrou até para um secretário municipal entrar em cena e ser caçoado pelo Cabo Setenta. Mas, logo na sequência, Cabo Setenta, que é interpretado por Moab de Oliveira, também é “zoado” por suas características físicas.  Ainda no início do espetáculo, o mesmo Cabo Setenta pergunta ao público: “O que vocês estão fazendo aqui uma hora dessas? Deveriam estar em casa!”. De forma irônica, a piada induz à reflexão quanto a necessidade de ocupação cultural dos espaços públicos.
                Em relação à comicidade, o texto, como é característico do teatro popular, propõe muitas piadas que hoje podem ser consideradas preconceituosas, no tocante ao machismo, racismo e homofobia. Na montagem, a cia. Nêga Fulô abdica de muitas das piadas do texto original, mas mantém parte delas, principalmente as gozações com o Nego Benedito, feitas pelas outras personagens. Alguns integrantes do grupo contam que, durante uma apresentação no centro de Maceió, um senhor negro de idade avançada se manifestou no meio de uma das cenas, denunciando que eles tinham dito uma piada racista. Algumas zombarias as quais sofre Benedito fora da encenação podem ser consideradas racismo, porém é preciso compreender o contexto e o sentido em que elas são utilizadas na montagem, se como denúncia de uma realidade ainda muito presente em nosso cotidiano ou como legitimação dos preconceitos. Enfim, são muitas as leituras possíveis, a partir dos distintos lugares de onde se vê e talvez o espetáculo permita, no mínimo, as duas leituras anteriormente mencionadas.
                Vale ressaltar que na obra encenada, assim como no texto original, o personagem negro cria empatia no público e, apesar dos preconceitos sofridos, com a astúcia características dos tipos universais populares, “vence” todos os demais, usando, no entanto, também sua força física, o que pode denotar o reforço de certo estereótipo da negritude. Penso que o elenco (que é, em sua maioria, negro) está atento à essas questões e às possíveis leituras de sua obra e pode seguir adaptando-a de acordo com as transformações contemporâneas das consciências de raça, etnia, gênero e sexualidade. 
                A marca cômica e improvisacional da montagem permite, por exemplo, que Régis de Souza insira, em meio a uma cena como Benedito, uma crítica à Jair Bolsonaro, crítica esta que, aparentemente, gera um incômodo em parte do público. Em outro momento o mesmo Benedito induz o público a responder positivamente a uma pergunta, em relação a uma situação que a encenação mostrava que era mentirosa. O público adere ao pedido da personagem e então Benedito responde e provoca: “Assim começa a corrupção!”, lançando mais um aspecto de crítica política por meio de um humor leve e relacional. O elenco insere ainda, gags clássicas, como um trocadilho com a palavra “cutuvelo” (pronunciada com a primeira sílaba destacada das demais), o que gera muitas gargalhadas nos espectadores. De forma geral, o público de Japaratinga mostrou-se muito participativo, comentando as cenas, respondendo às piadas, provocando as personagens e, pelo que pude observar, divertiu-se enormemente com a apresentação.
Como já ressaltado, o elenco destaca-se pela capacidade de improviso e relação com o público, no entanto, provavelmente pela dificuldade em manter uma rotina intensa de ensaios (já que todos os integrantes tiram seu sustento de outros trabalhos) e apresentações (pela escassez de apoios), deslizam em alguns momentos, com esquecimentos de texto e de acompanhamento na sonoplastia. Mas, devido à intimidade do grupo em cena e às suas habilidades, parte dos erros são bem contornados e geram mais piadas, a partir do improviso. As partituras corporais do elenco também deixam um pouco a desejar, já que eles se apoiam muito em suas habilidades discursivas. Por vezes, tive vontade também de ouvir um acompanhamento de instrumento harmônico às músicas utilizadas no espetáculo, mas compreendo que nem sempre é possível contar com músicos acompanhando a trupe.
Por fim, é importante lembrar como é difícil manter a continuidade de trabalhos como esse, e como é necessária a existência de mais políticas públicas para manutenção e circulação destas obras, o que geraria também um crescimento estético das encenações, uma vez que com mais oportunidades de apresentação, o trabalho tende a se desenvolver. Assim, sigo na torcida para que os poderes públicos ampliem sua sensibilidade e atuação nas políticas culturais e que o grupo tenha longa vida e possa levar seu trabalho para diversas localidades, muitas das quais só têm acesso ao teatro graças a trabalhos como o realizado pela Cia. Nêga Fulô.

Referências
IBGE. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Perfil dos estados e dos municípios brasileiros: cultura: 2014. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95013.pdf Acesso em 02 de maio de  2018.

MATE, Alexandre. Apontamentos acerca do conceito de acessibilidade. In: MATE, Alexandre. O teatro adulto na cidade de São Paulo na década de 1980. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
SANTOS, Ivanildo Lubarino Piccoli dos Santos. O dueto cômico: da Commedia Dell´Arte ao cavalo marinho. Tese (doutorado). Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, 2015.


[1] Ator, arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).
[2] SANTOS (2015).

A encenação da “Última pena de morte no Brasil”, em Pilar: os desafios para não enforcar a história do povo negro



Alexandre Falcão de Araújo[1]

Em 28 de abril de 2018 completaram-se 142 anos do evento que é considerado a última execução por pena de morte no Brasil. Trata-se da execução do negro escravizado Francisco, ocorrida na cidade de Pilar (que atualmente é parte da região metropolitana de Maceió), na província de Alagoas, em 1876. Francisco, juntamente com outros dois negros escravizados, foi julgado pelo assassinato do capitão da guarda da província e proprietário de escravos João Evangelista de Lima e sua esposa, Josefa Marta de Lima. Os assassinatos teriam ocorrido como revolta contra os maus-tratos sofridos por parte dos senhores e na ânsia por liberdade. De acordo com a lei vigente à época, Francisco foi condenado à pena de morte enquanto o outro negro escravizado que fora preso, Vicente, acabou morrendo no cárcere.
Há 18 anos este marcante e trágico acontecimento é foco de uma encenação grandiosa, intitulada “A última pena de morte no Brasil”, de autoria e direção de Alberto do Carmo, com promoção da Prefeitura do município de Pilar e ampla participação da população.
Pilar em 1869
No dia em que se lembra o doloroso fato histórico, tive a oportunidade de assistir ao espetáculo em sua mais recente encenação. Pelos relatos de amigos soube que originalmente a encenação acontecia de forma processual, pelas ruas e espaços públicos da cidade de Pilar, terminando no sítio Bonga, onde ocorreu o assassinato de Josefa e, posteriormente, o enforcamento de Francisco. Porém, como este período do ano, na região, é muito chuvoso, algumas edições da encenação foram prejudicadas e então optou-se por leva-la para o Ginásio de Esportes Nossa Senhora do Pilar, onde a apresentação tem ocorrido nos últimos anos.
Os registros históricos indicam que a execução da pena de morte foi realizada com amplo caráter espetacular, de forma a “servir de exemplo” para que tal tipo de crime não mais ocorresse. Não pude assistir à encenação em sua versão itinerante pelas ruas da cidade, mas posso imaginar a força simbólica que ela deveria alcançar, na relação com os locais históricos onde ocorreram a sequência de atos violentos. Porém, independente do local onde é apresentada a encenação, é louvável a iniciativa do poder público municipal em realiza-la e é bonito ver o envolvimento de parte da população da pequena cidade, de cerca de 35.000 habitantes, em sua concretização.
 O elenco envolve jovens estudantes de oficinas de teatro e dança da comunidade, além de experientes atores e atrizes convidados e outras personalidades da região. Salta aos meus olhos “estrangeiros” o caráter sincrético da cultural regional e da abordagem trazida no espetáculo, uma vez que os ritos afro-brasileiros são mostrados de forma imbricada à presença da religião católica. Inclusive, as cenas que mais me encantaram foram as de dança afro e capoeira, lideradas por artistas e capoeiristas mais experientes, acompanhados por jovens aprendizes que entraram em cena junto a seus mestres.
É muito bonito também ver em cena a presença de atrizes e atores negros, que compõem a maioria do elenco, interpretando inclusive alguns papeis como o de senhor de escravos, gerando uma inversão do que tradicionalmente ocorre, por exemplo, na teledramaturgia brasileira, em que a presença de artistas negros é absurdamente desproporcional à realidade étnica de nossa população.
Porém, parte do meu encantamento se esvaiu com a perspectiva histórica que é trazida pela encenação. Ao apresentar a história, especialmente do meio para o final da trajetória cênica, parece que os responsáveis optam por conta-la do ponto de vista dos vencedores, ou seja, da elite imperial.
O olhar da encenação me parece extremamente condescendente com a política imperial e com a postura oficial da Igreja Católica à época. O dramaturgo coloca “na boca” do Imperador Dom Pedro II e dos homens livres (e brancos) da elite, um discurso que não parece condizer com o que os documentos históricos indicam em relação ao discurso oficial de meados do século XIX.
Não sou nenhum especialista em história imperial e muito menos na história alagoana, porém uma pesquisa na internet me levou a alguns artigos que reforçaram minhas dúvidas quanto à perspectiva assumida pela Encenação.
Destaco aqui o artigo “Crime e Castigo: Pena de Morte e a Manutenção da Ordem no Império Brasileiro (1830-1876)”, de autoria de Oseas Batista Figueira Junior (FIGUEIRA JUNIOR, 2017), historiador e mestrando em História Social pela UFAL. Nos parágrafos a seguir, parto da análise de Figueira Junior e mais algumas referências (devidamente citadas), para ajudar a contextualizar parte da perspectiva oficial em relação à escravidão.
Francisco foi condenado a partir da Lei 4, de 10 de junho de 1835, lei esta que só foi de fato revogada com a proclamação da República e a aprovação de uma nova constituição, em 1889. A dura lei de 1835 tem grande semelhança com o primeiro Código Criminal do Brasil, aprovado em 1830, sendo que ambos eram, de certa forma, respostas ao medo da elite imperial frente às revoltas e insurreições de escravos.
            A inserção da pena de morte no código criminal gerou amplo debate, de forma que o deputado André Rebouças manifestou sua posição de que a inclusão da pena capital seria uma grave desobediência às leis divinas. No entanto, esta visão de Rebouças restringia-se aos homens livres e brancos, pois em relação aos negros escravizados, o deputado assim se manifestou:

Os escravos não podem assaz prezar a vida por que assaz a não gozam; se para alguém a morte é menos repressiva, é pra eles, e sem nenhuma boa esperança se insurgem e morrem brutalmente (...). Faça-se para os escravos uma ordenança separada; e por eles não façamos tamanho mal aos cidadãos, aos homens livres. Ninguém pode tirar a vida do homem, que não deu nem pode reparar; tirá-la é contra o poder divino, está fora do poder humano; nenhum legislador pode decretar a pena de morte (REBOUÇAS apud FIGUEIRA JUNIOR, 2017, p. 193-194).

            Fica claro pelo teor do discurso, que os negros escravizados não eram considerados humanos. Na mesma perversa linha de raciocínio se manifesta o deputado Paula Cavalcanti:
(...) quem senão o temor da morte fará conter essa gente imoral nos seus limites (...) exclui-se do código a pena de morte e das galés; resta a prisão simples. Ora, o escravo que viver (...) encerrado numa prisão pode se entregar a ociosidade e a embriaguez. Paixão favorita dos escravos (...). A pena de galés é ainda muito doce para essa qualidade de gente (CAVALCANTI apud FIGUEIRA JUNIOR, 2017, p. 194).

Em resumo, a lei de 1835 foi um endurecimento do Código Penal de 1830 e se aplicava especialmente aos negros e negras escravizados. Consta no artigo 1º da Lei 4, de 1835:

Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem.[2]

Tal lei se manteve no ordenamento jurídico brasileiro até a nova constituição republicana. Apesar da pena de morte continuar valendo para homens brancos e livres, regulamentada pelo Código Penal de 1830, na maior parte dos casos as execuções eram aplicadas somente a homens negros. Diferentemente do que é dito na encenação de Pilar, apesar de gradualmente não ter sido mais aplicada, a Lei 4, de 1835, foi mantida por Dom Pedro II, por motivos políticos ligados aos interesses de manutenção do Império.
            Apesar de em algumas publicações ser citado que Dom Pedro II seria contrário à escravidão, uma das hipóteses mais aceitas é de que esta posição só seria consolidada após encontros do imperador com o escritor francês Victor Hugo, ocorridos após a condenação de Francisco (WESTIN, 2016).
            No aparente esforço de desenhar um quadro positivo do imperador e da elite da época, a encenação de Pilar acaba por legitimar o discurso oficial e quase justificar a execução de Francisco, frente ao horrendo assassinato cometido, sem deixar de analisar e pesar (especialmente do meio para o desfecho da obra), quão horrenda foi a escravidão que perdurou por mais de três séculos em nosso país e que foi responsável pela morte de incontáveis negras e negros escravizados.
            Nesse mesmo sentido, na encenação, frente à iminência da execução de um dos seus irmãos, as personagens escravizadas apresentam um discurso de passividade e resignação, dizendo que para alcançar a liberdade era preciso esperar. Ouvir um discurso desse tipo na região onde Zumbi dos Palmares e seus conterrâneos promoveram sua resistência e enfrentamento me deixou bastante incomodado.
            Talvez de forma não intencional, a encenação acaba por culpabilizar o povo negro pela sua situação e no afã de promoveu um discurso pacifista, mas que por vezes soa ingênuo ou parcial (no sentido de defender a paz para apenas uma parcela da sociedade), acaba por apresentar personagens da elite imperial, econômica e religiosa supostamente humanistas, mas que, ao mesmo tempo, perpetuam a escravidão! Segundo a fala de uma das personagens brancas, o erro dos senhores de escravos (e, indiretamente, da elite social como um todo) não teria sido a escravidão em si, mas os “excessos”, como os açoitamentos e outros maus-tratos que ajudavam a manter o controle dos negros escravizados e, por vezes, também os levavam à morte.
            Ao final, ao apresentar um Dom Pedro II e diversos figurões da sociedade como “enojados” com a decisão da pena de morte, mas considerando-a necessária, a encenação, aparentemente, defende esta posição, uma vez que não a contrapõe com outros discursos de personagens negras ou dos próprios artistas em cena. Assim, a obra pode, mesmo sem ter a intenção, contribuir para o fortalecimento do discurso fascista que renasce com força nos tempos atuais.
            O espetáculo termina com a fala de um personagem branco, defendendo a “humanização”, mas eu me pergunto: como é possível defender a humanização e perpetuar a escravidão ao mesmo tempo?
            Talvez um dos problemas centrais da construção cênica esteja na opção, na maior parte dos momentos, pela forma dramática de interpretação. Aqui entro em algumas especificidades que podem não ficar muito claras para leitores de fora do universo teatral. Mas, uma das máximas em teatro é que “forma é conteúdo e conteúdo é forma”, assim, apresentar um tema complexo como é a escravidão, tentando manter a maior parte dos posicionamentos políticos restritos às falas das personagens, aumenta o risco de que o trabalho, mesmo eventualmente sem querer, reforce um discurso que legitima a violência contra a população negra. Uma opção para o encenador e para o elenco, seria se valer de quebras épicas, com narradores, comentários, inserção de mais documentos históricos ou a assunção de um posicionamento por parte dos próprios artistas em cena, de forma que o público pudesse compreender qual o real posicionamento daquele conjunto de artistas frente à trajetória contada, mostrando as muitas contradições dos movimentos históricos, em vez de reforçar o discurso oficial da época. 
            Tal posicionamento me parece necessário por diversos motivos, entre eles pelas evidências de que apesar de juridicamente abolida do estado brasileiro, a pena de morte contra a população jovem e negra continua válida e cotidiana nas periferias das cidades brasileiras e que, portanto, essa e outras tantas dívidas históricas com o povo negro não foram sanadas.
 
Referências
CARDOSO, Antonio Pessoa. Pena de morte: 400 anos atrás. Disponível em: http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=88 Acesso em 30.abril.2018.
FIGUEIRA JUNIOR, Oseas Batista. Crime e Castigo: Pena de Morte e a Manutenção da Ordem no Império Brasileiro (1830-1876). Revista História e Diversidade, Cáceres-MT, v. 9, n. 1, p. 188-202, 2017. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/historiaediversidade/article/view/2755 Acesso em: 29.abril.2018.
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[1] Ator, arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia.
[2] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM4.htm Acesso em: 30.04.2018.