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segunda-feira, 7 de maio de 2018

“Brabas” questões trazidas à cena pela cia. La Casa



Alexandre Falcão de Araújo[1]

Na noite de 27 de abril de 2018, a pequena praça Nossa Senhora das Candeias, na cidade de Japaratinga, litoral norte de Alagoas, recebeu a apresentação de “A mulher braba”, da cia. La Casa, de Maceió. A apresentação aconteceu por meio do projeto “Circuito Alagoano de Teatro”, realizado pela cia. Nêga Fulô, também de Maceió, com recursos do prêmio Mestre Cicinho (do governo do estado) e em parceria com a prefeitura local.
O trabalho tem a direção e adaptação de Abides de Oliveira, importante artista teatral da cena alagoana, oriundo do coletivo Joana Gajuru, grupo do qual se desvinculou em 2015. Abides é responsável pela organização de publicações de referência na cena regional, como o catálogo dos grupos de teatro de rua do Nordeste (OLIVEIRA, 2014) e o catálogo de 15 anos do grupo Joana Gajuru (OLIVEIRA, 2010), além de ter sido colaborador do capítulo alagoano da “Cartografia do Teatro de Grupo do Nordeste” (YAMAMOTO, 2012), realizado pela cia. Clowns de Shakespeare.
Abides de Oliveira - Cia La Casa, em Japaratinga.
Além disso, recentemente Abides também entrou em cena no espetáculo “A mulher braba”, substituindo outro ator. Em cena, somam-se a ele as atrizes Ane Oliva e Tereza Gonzaga, o ator Gi Silva e o músico Gama Filho. Não por acaso, todos os atores e atrizes do elenco passaram pelo grupo Joana Gajuru, um coletivo de destaque na história do recente teatro alagoano. O diretor da cia. La Casa ressalta, inclusive, a influência dos grupos Imbuaça (de Aracaju, Sergipe) e Joana Gajuru no trabalho da La Casa, uma vez que a vertente do teatro popular, muito presente no teatro de rua alagoano, é a principal característica do trabalho em “A mulher braba”.
Na data da apresentação em Japaratinga, apesar da forte e insistente chuva que caiu ao longo do dia e até meia hora antes do horário marcado para a apresentação, o público compareceu em peso, assim que a chuva cessou. A maioria dos presentes era formada por moradores da comunidade, já que é período de baixa temporada e não havia muitos turistas hospedados na cidade. O público reagiu muito bem à apresentação, que conta a história de um pai e uma mãe ricos, que querem casar a filha, uma jovem brava e arredia. Mas, os pais só conseguirão “solucionar” o matrimônio da filha com o aparecimento de um jovem plebeu.
                De forma eminentemente épica, o espetáculo se inicia com a apresentação do elenco (com brincadeiras com os nomes das atrizes e dos atores) e suas personagens ao público. Com estrutura narrativa simples, as personagens-tipo logo são reconhecidas pelo público: o pai que tenta impor respeito, mas não consegue; a mãe mandona e autoritária; a filha brava e rebelde e o plebeu “astuto”.
                Como é característico de grande parcela do teatro popular, o elenco traz uma bela, simples e expressiva maquiagem, que ressalta os tipos das personagens. Além disso, joga bastante com o público, que participa e se diverte juntamente com as e os artistas. Nas palavras do diretor, o grupo tenta aproveitar ao máximo as interferências e participações do público, como aconteceu neste dia, na cena do casamento, em que, de improviso, duas crianças do público foram convidadas a fazer as daminhas de honra da noiva. Isso gerou uma situação muito curiosa e cômica, já que a cena estava longe de ser romântica, pois a noiva seguia bem brava, o que trazia um contraponto ao divertimento das crianças em cena.
               
Ane Oliva em A Mulher Braba
Outro ponto de destaque da encenação são as músicas, todas autorais e executadas ao vivo, que narram, contextualizam e dão uma atmosfera festiva para o espetáculo. Especificamente no dia em que assisti, houve uma dificuldade técnica em relação aos microfones head-set, em parte devido à chuva anterior à apresentação, pois não houve tempo para testá-los bem. Assim, eles acabaram não funcionando corretamente, o que levou o elenco, já durante a cena, a desistir de usá-los.
As questões tecnológicas ainda seguem como desafio para o teatro de rua, uma vez que se relacionam com, além de limites financeiros, diversos fatores como o clima, que não podem ser controlados em espaço aberto. Neste dia, especificamente, as dificuldades com os microfones causaram perdas na concentração das atrizes e dos atores e limitações de movimentação (já que quando eles se movimentavam mais rapidamente o equipamento deixava de funcionar). Após o grupo abandonar os microfones, sua movimentação e concentração melhorou e a voz falada esteve bem audível, mesmo sem amplificação. Apenas o canto ficou com volume mais baixo, sendo um pouco difícil perceber os arranjos propostos. Ainda em relação à parte musical, o competente músico e compositor Gama Júnior talvez também pudesse ser melhor utilizado em cena.
Tratando da movimentação, o grupo utiliza bem os procedimentos de entradas e saídas de cena e o uso de alguns espaços externos à roda, para o jogo entre o elenco e com o público. No entanto, o elenco esteve tímido em relação à construção das máscaras corporais, apoiando-se muito no texto e nas habilidades verbais, ficando aquém do potencial físico que a obra permitiria. Destaco, porém, o trabalho da atriz Ane Oliva, como “mulher braba” que, em diversos momentos, deu intensidade à sua máscara corporal, aproveitando-se do potencial oferecido pela personagem.           
Retornando à estrutura da narrativa, é importante contar que o texto montado pela cia. La Casa é uma livre adaptação do original “O Moço que casou com a mulher braba”, datado do século 14 e de autoria do escritor espanhol Don Juan Manuel. Tal obra recebeu uma nova versão, em 1903, do também espanhol Alejandro Casona. Abides ressalta que o texto original era muito mais violento, e também, podemos imaginar, extremamente machista. Na montagem da cia. La Casa, o texto tornou-se mais leve, com alterações de algumas cenas que não seriam aceitas nos dias atuais.
Ainda assim, a temática da montagem repercutiu e, em apresentações em Maceió, algumas militantes feministas se manifestarem contrárias à conclusão do espetáculo, em que a filha se casa com o plebeu, se submetendo a ele. Tais críticas ecoaram no grupo e a cena foi alterada, de forma que a real submissão da filha ao novo marido torna-se dúbia, na medida em que a personagem declara: “É uma hora servir e honrar o homem de sua casa”, ao mesmo tempo em que faz um gesto explícito para o público indicando que estava mentindo, que aquela não era sua real posição.
                Sensível ao posicionamento de mulheres do público, o grupo alterou o sentido final da obra, questionando a submissão da esposa em relação ao marido. Assim como na encenação de “Torturas de um coração”, da cia. Nêga Fulô (apresentada em texto anterior, neste mesmo blog), o humor popular e seus preconceitos são colocados em questão na atualidade, na medida em que nos perguntamos: estamos fazendo uma denúncia ou reforçando os estereótipos e relações de poder? Creio que as respostas a tais perguntas não são únicas, nem tão óbvias e devem ser sempre pensadas em relação ao contexto. Na capital alagoana, a encenação incomodou parte do público e foi alterada. No interior, já com a cena final adaptada, a impressão é de que o público (que talvez ainda viva ou veja mais frequentemente em seu cotidiano relações machistas, tidas como naturais) reconheceu a situação vivenciada pela mulher braba, mas apesar das críticas apresentadas na montagem à situação de opressão, ainda parece ficar contrário a personagem feminina central.
A mulher braba denuncia: “Fui obrigada a casar!” e, em outro momento, critica o público presente que gargalhava: “dançando com a miséria dos outros!”. No entanto, após o término da apresentação, uma senhora do público passa ao lado da roda e diz, de forma brincalhona, para a atriz Ane Oliva, ainda caracterizada como sua personagem: “_Case, mulé!”. Uma simples e espontânea participação de uma espectadora parece indicar certa concordância com os padrões machistas de relacionamento ainda predominantes em nossa sociedade.
As temáticas feminista e de gênero estão na pauta contemporânea do teatro de rua e vêm sendo abordadas em cena ou debatidas, por exemplo, pelos jovens coletivos femininos Mãe da Rua e Madeirite Rosa, ambos de São Paulo e pelo grupo Resta Nóis, de Florianópolis.  O desafio de pesar e medir, a cada momento, as escolhas estéticas e políticas para as cenas, seguirão no horizonte dos grupos que se aventuram a ir pra rua com suas obras e que têm seriedade e compromisso em seu fazer artístico, como é o caso da cia. La Casa. Dessa forma, creio que o que me cabe aqui é lançar dúvidas e reflexões, que deverão ser encaradas continuamente ao longo de nossas trajetórias e em diálogo com os movimentos sociais e com as parceiras e parceiros de nosso ofício e de nossas lutas.

Referências
OLIVEIRA, Abides de. Joana Gajuru 15 anos: memórias dos filhos de Joana. Maceió: Associação Teatral Joana Gajuru, 2010.
OLIVEIRA, Abides de. Beleza, cheguei agora! Grupos de teatro de rua do Nordeste. Maceío: 2014.
YAMAMOTO, Fernando Minicuci. Cartografia do teatro de grupo do Nordeste. Natal (RN): Clowns de Shakespeare, 2012.


[1] Ator, arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).

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